Diário da Rússia

Dmitry Babich

Mitos sobre a Rússia

A cápsula russa de Snowden é tão ruim?

Durante todo o ano de 2013 o tema do asilo de Edward Snowden na Rússia em nenhum momento deixou as páginas da imprensa ocidental. O que os correspondentes ocidentais não poderiam conceber era que Snowden é capaz de levar uma vida ativa e agradável na Rússia. Na verdade, o ex-agente da CIA parece estar fazendo exatamente isso, visitando restaurantes de Moscou, reunindo-se com delegações parlamentares alemãs e dando entrevistas aos meios de comunicação americanos quase toda semana.

Isso deixa alguns jornalistas furiosos. Afinal, por muitos anos o destino desejado dos caçadores da verdade era do leste para o oeste, não o contrário. Por que essa antiga maré foi mudar de direção justamente sob a presidência de Vladimir Putin, a quem a mídia ocidental adora demonizar? Então, inicialmente, após o desembarque de Snowden num aeroporto de Moscou em 23 de junho deste ano, muitos pessimistas previram que ele nunca iria sair do assim chamado “hotel-cápsula” nas dependências do Aeroporto Sheremetevo.

Uma colunista do “Washington Post”, Anne Applebaum, escreveu uma hilária reconstrução da situação de Edward Snowden em Sheremetevo. Isso tem que ser citado na íntegra, visto que reflete as realidades de Sheremetevo dos anos de 1980 e pode ser um cenário ideal para uma cena de um antigo filme da Guerra Fria. Segue a citação do “Washington Post”:

“Aqueles que pensam que Edward Snowden merece ser preso, ou coisa pior, podem se animar com o pensamento de que o Aeroporto Sheremetevo é possivelmente o centro de transportes mais destruidor de almas e o que mais provoca raiva no mundo.   O teto baixo e a pouca iluminação criam uma sensação de morte iminente, enquanto relógios superfaturados brilham na escuridão. Vendedoras vendem sanduíches obsoletos; homens de ternos ruins bebem silenciosamente nos bares. Um cheiro vago de combustível diesel preenche o ar, e uma camada fina de fuligem cobre os bancos sem encosto e o chão pegajoso. Não é um lugar em que você gostaria de passar duas horas, muito menos dias.”

Eu acho que qualquer um que teve a oportunidade de visitar o Aeroporto Sheremetevo antes e depois da sua reconstrução, seis anos atrás, iria rapidamente entender que Anne Applebaum descreve o ANTIGO Aeroporto Sheremetevo, que já não existe mais. A Sra. Applebaum poderia se desapontar em achar que Sheremetevo agora tem um olhar entediado para qualquer aeroporto bem funcional na Europa – com trens para o centro de Moscou e hospedagem em hotéis de cinco estrelas para os viajantes.

Infelizmente, essa mudança ocorreu sob a liderança de Putin, a quem Anne Applebaum culpa por todos os males do mundo em suas colunas. Nós lamentamos pela inconveniência, mas a Sra. Applebaum pode alegrar-se com a notícia de que, ao ler sua coluna, vários jornalistas de Moscou apareceram com a ideia de abrir uma sala especial dedicada a Anne Applebaum em Sheremetevo. Poderia ser um lugar nostálgico descolado, com pisos pegajosos e uma fina camada de sujeira, e pode conter até mesmo algum perigo iminente ao redor. O salão operaria especialmente para jornalistas como Applebaum, que aplicam estereótipos da era soviética para a nova e totalmente diferente Rússia, que eles não conhecem.

Snowden revigorou esses estereótipos – provavelmente, contra a sua própria vontade. Quando ele finalmente conseguiu asilo temporário na Rússia em agosto, depois de uma longa busca de outros destinos, jornalistas ocidentais rapidamente o declararam apenas mais um agente russo. A mesma vidente Anne Applebaum previu que um dia ele iria ser trocado por algum espião russo preso nos Estados Unidos e ir pelo ralo da história – esquecido, infeliz e profundamente arrependido da terrível calúnia que ele despejou sobre os cumpridores da lei da Agência de Segurança Nacional e de outros serviços de segurança.

Mas ao invés de implorar pelo perdão da NSA, os amigos de Snowden fora dos Estados Unidos ativaram um novo lote de seu material. Está provado que a NSA grampeou os telefones da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, assim como as dezenas de milhões de cidadãos cumpridores da lei alemães, franceses e espanhóis.

Como se tivesse estabelecido para si o objetivo de contradizer as previsões de Anne Applebaum, Snowden foi mostrado pela televisão ocidental em lugares interessantes com pessoas interessantes. Snowden visitou restaurantes em Moscou e se encontrou com políticos democráticos – por exemplo, o famoso ativista “verde” alemão Hans-Christian Stroebele. Numa entrevista para a Voz da Rússia, Stroebele descreveu a situação de Snowden em Moscou como sendo qualquer coisa menos um isolamento maçante. Segue o que o próprio parlamentar alemão disse sobre o principal objetivo da reunião:

“Eu vim para Moscou para saber do Sr. Snowden como ele pode nos ajudar a investigar como a NSA espiou os cidadãos dos países europeus, em particular na Alemanha. A segunda pergunta que eu lhe fiz foi se ele estaria disposto a comunicar o que sabia à Justiça alemã, ou seja, para o procurador-geral ou o Parlamento. Acho que todos nós devemos ser gratos a Snowden e ajudá-lo a defender os verdadeiros valores democráticos americanos. Ele deve falar para nós, se nós formarmos uma comissão parlamentar que gostaria de lhe fazer perguntas.”

Snowden também foi visitado por outros parlamentares da Alemanha, e ele planeja responder em janeiro do próximo ano a algumas questões dos membros do Parlamento Europeu.

Curiosamente, ele começou a sua atividade pública logo depois de ter recebido o asilo na Rússia no início de agosto. Já em 13 de agosto, Snowden deu uma entrevista a um correspondente do “New York Times”, o jornalista Peter Maass. Entretanto, os estereótipos sobre a Rússia como uma “sociedade fechada” foram tão fortes que alguns jornalistas ocidentais continuaram a lamentar a situação de Snowden nas mãos do FSB, o serviço de segurança russo. O editor da seção de opinião do “The Moscow Times”, Michael Bohm, saiu com as tiradas mais hilariantes deste tipo, com o provisoriamente intitulado "Snowden está condenado a uma vida terrível numa cápsula". Este artigo é digno de ser lido palavra por palavra.

Fragmento do “The Moscow Times”: “O Kremlin não gosta – e desconfia altamente – dos leakers, e ainda mais do que a Casa Branca, e, mesmo assim, vai manter Snowden numa rédea curta... O mais provável é que ele vá permanecer num local isolado, com o mínimo de contato com o mundo exterior – uma forma de prisão domiciliar. Além do mais, ele provavelmente será limitado a um trabalho sem desafios, o que é uma enorme queda em comparação com o prestigiado cargo que tinha na Booz Allen."

Agora Michael Bohm, escrevendo tudo isso em plena Moscou, para o consumo, em sua grande maioria, de moscovitas que leem em inglês, pode se surpreender ao descobrir que nenhuma publicação em língua Inglesa seria autorizada a escrever sobre o país de acolhimento de tal maneira. Isto não seria possível, digamos, na Turquia, apesar das eleições alternativas daquele país, e certamente não seria possível na China. Então, será que pode brotar na mente de Bohm a ideia de que ele realmente não vive em um país tão autoritário?

Infelizmente, isso é altamente improvável. A julgar por outras citações do artigo do Sr. Bohm dedicado a Snowden, o Sr. Bohm está vivendo no mundo da espionagem soviética da década de 1960, assim como Anne Applebaum está vivendo no Sheremetevo soviético da década de 1980. Vamos citar os paralelos históricos do Sr. Bohm sobre a estada de Snowden em Moscou:

Trecho do “Moscow Times”: "A vida de Snowden na Rússia provavelmente vai se assemelhar à de Lee Harvey Oswald, que reclamou da falta de casas noturnas e pistas de boliche. Além do mais, Oswald estava sob vigilância constante. Oswald ficou apenas dois anos e meio no paraíso dos trabalhadores soviéticos e implorou à Embaixada dos Estados Unidos para lhe emitir um novo passaporte a fim de que ele pudesse voltar para os Estados Unidos, o que fez em 1962, pouco mais de um ano antes de o Presidente John Kennedy ser morto... Snowden provavelmente vai estar sob vigilância constante também, e ele terá que prestar contas regulares de todas as suas atividades para a Lubyanka, seus movimentos dentro da Rússia serão firmemente controlados, quaisquer aparições na mídia terão de ser apuradas pelo FSB, e as chamadas de telefone e os e-mails serão atentamente monitorados."

Esse é o destino de Snowden no mundo de fantasia de Michael Bohm, onde Snowden vai logo perceber – vamos citar mais uma vez – "que ele nunca deixou a cápsula de Sheremetevo, no fim das contas". Bem, é difícil dizer que tipo de cápsula permitiu que Michael Bohm viva em Moscou, sem perceber as casas noturnas e as pistas de boliche, que surgiram aqui em grande abundância, desde os tempos em que Lee Harvey Oswald sentiu tanta falta delas apenas cerca de 51 anos atrás. E o Sr. Bohm realmente acredita que Edward Snowden estaria condenado às mesmas "danças sindicais", que Lee Harvey Oswald descreveu com tal desgosto? Quanto aos telefonemas rastreados e mensagens de Edward Snowden, sua entrevista ao “New York Times” foi concedida por mensagens criptografadas, e se houver um telefone célebre no mundo que tenha sido grampeado, não é o telefone de Snowden. É o telefone da chanceler alemã Angela Merkel, que não foi grampeado pela Lubyanka, mas pela NSA. E essa atividade ilegal foi interrompida por ninguém menos que Snowden, que a revelou via mídia internacional.

Michael Bohm está apenas 50 anos atrasado com suas previsões sobre o local de onde o alívio de Snowden pode surgir. As Embaixadas dos Estados Unidos ao redor do mundo trataram o Sr. Snowden de uma maneira bem diferente do Sr. Oswald nos anos de 1960. Ao invés de lhe emitir um novo passaporte, o Departamento de Estado cancelou o que Snowden já tinha. Os diplomatas americanos também fizeram todos os esforços para colocá-lo na cadeia, longe das casas noturnas e pistas de boliche. E os chamados países democráticos, como a Alemanha e a França, não conseguiram dar asilo a Snowden, mesmo depois que se tornou evidente que as revelações de Snowden sobre espionagem americana contra estes países eram verdadeiras. Aqui está o que um jornalista alemão, Moritz Schuller, do “Daily Tagesspiegel”, disse sobre os pedidos de asilo alemão para Snowden:

“Sim, falou-se da concessão de asilo político a Snowden. Mas enquanto 50 proeminentes alemães assinaram uma carta aberta apoiando esta ideia, não houve nenhum sinal de que o governo alemão iria adiante com a ideia. O governo diria: ‘Por que precisamos disso? Nós já sabemos a maioria das coisas que Snowden gostaria de nos dizer.’ A única razão para trazer Snowden para cá seria para mostrar aos americanos o que nós pensamos deles. É válido arriscar as relações germano-americanas para algo do tipo?”

Então, o resultado final é que a Rússia passou a ser o único país do mundo onde o símbolo da liberdade moderna, Edward Snowden, pode viver em segurança. E essa vida parece ser nem cinza nem desprovida de sentido, como a mídia ocidental tem esperado. Assim, a mídia ocidental vai ter que aturar isso por muitos meses ou pode ser até mesmo anos – muito provavelmente, apenas escrevendo sobre a falta de liberdade de Snowden na Rússia.

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