Diário da Rússia

Mariana Gomes

“Dom Quixote”, ao vivo, para as plateias de 300 cinemas em 22 países

O Teatro Bolshoi e a companhia francesa CielEcran apresentaram no domingo, dia 6, o balé “Dom Quixote”. O espetáculo começará às 7 da noite, no horário de Moscou, e a lista dos cinemas que apresentarão esse clássico pode ser conferida no site www.cielecran.com

“Dom Quixote” – o livro e o balé

Considerado o maior romance de todos os tempos, o livro escrito por Miguel de Cervantes Saavedra, em 1605, é uma obra tragicômica, que leva o leitor a viajar à Espanha do século XVII, conduz à reflexão, faz rir e chorar, e, o mais importante, passa a mensagem e a lição de que é preciso sonhar.

Mariana Gomes, única estrangeira solista do corpo de baile do teatro Bolshoi, dança o "Dom Quixote"

Balé tido como um presente para a humanidade, foi levado ao palco pela primeira vez em 14 de dezembro de 1869, aqui mesmo, no palco do Teatro Bolshoi de Moscou, com a música fascinante de Ludwig Minkus e libreto e coreografia de Marius Petipa e Aleksander Gorsky. Petipa leva ao palco um pedaço da Sevilha, toureadores, seguidilhas, flores, castanholas, taverna, sem esquecer da técnica clássica, com seu famoso “Pas-de-Deux”, no último ato, exigindo muita força e precisão nos movimentos. Os famosos 32 fouettés, todas as suas danças típicas espanholas, sua sensualidade, figurinos alegres, cenas engraçadas e até mesmo animais de verdade no palco fazem do balé de, atualmente, três atos uma obra prazerosa de assistir, e para nós, artistas, prazerosa de dançar!

Hoje, “Dom Quixote” é encenado por diversas companhias de balé, em teatros por todo o mundo, e, claro que seguindo a base de Petipa, cada uma tem sua versão modificada. Aqui no Bolshoi, o balé foi remontado em 25 de junho de 1999, pelo coreógrafo Aleksei Fadecheev, atual ensaiador de grandes estrelas, como Nikolay Tsikaridze. Algumas danças foram reduzidas, alguns figurinos modificados, e tudo resultou em um ato a menos: a peça, que tinha quatro atos, ficou um pouco mais curta, sem no entanto perder sua qualidade.

A alegria em três atos

O balé “Dom Quixote”, para nós, artistas do corpo de baile e solistas, é sempre sinônimo de alegria. Não há quem não goste de participar deste balé.

No primeiro ato, roupas típicas, flores no cabelo, brincos grandes, batom bem vermelho, temperamento espanhol. O cenário nos deixa à vontade, com mesas e cadeiras espalhadas pelo palco, canecas nas mesas, para servir um bom vinho... Toureadores, brincadeiras no palco, leque na mão e uma energia que nenhum outro balé tem.

O segundo ato começa com a Taverna, segue com a cena dos Ciganos e termina com o Sonho de Dom Quixote. Na cena do Sonho, tudo volta ao balé clássico, com a variação da Dulcineia, o pequeno Cupido e a difícil variação da Rainha das Dríades.

O terceiro e último ato representa o casamento de Kitri e Basílio, com muito clássico e danças espanholas, como o Fandango e o Bolero, que encerram o espetáculo e satisfazem não só a plateia, mas também nós, artistas.

O corpo de baile e os bastidores

O elenco é escolhido apenas dois ou até mesmo um dia antes do espetáculo. No mural de cortiça, no papel timbrado do Bolshoi, escritos a lápis pela diretora do corpo de baile (pessoa que não ensaia, nem dá aulas, apenas escolhe o elenco e sabe exatamente a altura e as medidas de cada bailarina, e onde ela deve ou não dançar), os sobrenomes dos artistas são divulgados em ordem de linha, que vai depender da altura, da técnica e assim por diante. Por exemplo, as meninas mais baixas dançam a Polka no primeiro ato com os Toureadores, as médias dançam Seguidilhas, as altas dançam Fandango no terceiro ato... E assim segue todo o elenco do balé. As meninas mais clássicas dançam também o ato do Sonho, que também é escolhido a dedo, pela altura e técnica clássica.

O ensaio do corpo de baile é muito rápido e objetivo. Logo depois da aula de dança clássica (aquecimento), todos correm para a grande sala de ensaios (sem espelhos, uma réplica do palco) e apenas repetem e relembram a ordem dos passos. Por isso, os novatos e novatas que acabam de chegar ao teatro para trabalhar demoram tanto a participar dos repertórios do Bolshoi, podendo ficar até um ou dois anos sem dançar quase nenhum espetáculo. Pois os balés que dançamos com frequência, como “Lago dos Cisnes” e “La Bayadère”, praticamente não são ensaiados. Ensaios longos, em períodos de dois meses, são apenas para casos de balés novos e estreias. A não ser, é claro, no caso dos solistas.

O papel de Kitri e Basílio com certeza requer muito mais que uma semana de ensaio, o que também depende muito da frequência com que a bailarina dança esse balé, e com que frequência ela está no palco. Os outros papéis de solo em geral também dependem do tempo necessário de cada um, como, por exemplo, a Mercedes. Mercedes é um solo de dança a caráter, que, apesar de não ser clássico e não ser tão difícil tecnicamente, merece uma atenção especial.

No geral, o ensaio do corpo de baile e o elenco não mudam muito. O que pode parecer muito curioso é que muitas vezes estamos no palco e sequer sabemos qual será a Kitri que vai entrar no dia do espetáculo. Principalmente quando estamos em turnê, e o elenco de solistas muda com frequência, uma bailarina dança pela manhã, outra dança à noite, e o corpo de baile raramente sabe a bailarina que vai entrar ao palco!

Nas coxias estão sempre os elencos que dançam em outros dias, os reservas ou novatos do teatro que estão ainda “estudando” o repertório. E o comentário geral no teatro é que não existe pior plateia, e mais crítica, do que a plateia das coxias. São nossos colegas, os artistas das coxias.

Nos camarins, camareiras para fechar, conferir e costurar cada figurino. Cabeleireiras para fazer o penteado adequado para cada dança. Uma camareira e uma cabeleireira para cada camarim.

Uma atmosfera de muita concorrência, mas às vezes também muito alegre, de muito companheirismo. Nos camarins do corpo de baile, muita risada, conversa, choros, brigas, intrigas... Convivemos e conhecemos o caráter de cada bailarina, mas em todas nós há um desejo guardado, uma coisa só em comum, da qual ninguém comenta: o nosso “Dom Quixote”. Bem escondido em cada uma de nós, um sonhador. O sonho de toda e qualquer bailarina, que dance Fandango ou Mercedes, que dance Seguidilha ou Bolero... Ela guarda e esconde sempre dentro dela o sonho de ser a única e primeira. Ser a própria Dulcineia!

“Dom Quixote” no Brasil

Se a gente comparar o papel de Dulcineia no palco do Teatro Bolshoi de Moscou com a mesma Dulcineia no palco do Teatro Basileu de Goiânia... Pode ser que seja a comparação de um moinho de vento com um dragão.

Em fevereiro de 2010, pleno carnaval no Brasil, “Dom Quixote” virou samba! Foi enredo de escola de samba, ao som da bateria na Sapucaí, bem diferente da montagem do famoso coreógrafo Vladimir Vassiliev para a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, fiel ao tema de Petipa e à música clássica de Minkus.

Foi quando subi ao palco pela primeira vez como primeira bailarina, no meu país, com a minha antiga escola, e com o partner Andrei Bolotin (solista do Teatro Bolshoi de Moscou). A versão do balé resumida em um único ato transformou a peça em suíte, o que o torna muito difícil para os solistas, um prazeroso desafio. Experiência única, sensações difíceis de descrever.

Preparar um espetáculo com a responsabilidade do primeiro papel requer muito trabalho, não só físico, mas psicológico. Um esforço constante, que não se resume ao trabalho em sala de aula. A bailarina acaba vivendo aquilo até o momento final do espetáculo. Cada dia, cada correção, cada cena, tudo é relembrado e ensaiado, repetido em frente ao espelho, no teatro, em casa. Detalhes na sapatilha, figurino, música. Uma preocupação constante com a estreia. A bailarina acaba abrindo mão de muitas coisas, sem perceber a sua vida própria, e por muito tempo vive a vida do personagem que deve representar, Muitas vezes, acaba esquecendo o mundo e a vida dela... Vida social, saúde, diversão, tudo isso fica esquecido e em segundo plano, esperando o dia da estreia.

Acredito que não foi em vão que Natalie Portman recebeu o Oscar de Melhor Atriz com o filme “Black Swan” – “Cisne Negro” –, mais que merecido. É muito difícil passar para o público leigo o sentimento e a loucura que é ser bailarina. No final do espetáculo aquela sensação de alívio, alegria. E, mesmo que insatisfeitas com a performance, ou muito satisfeitas, ao fecharem as cortinas, o sentimento é sempre um só, a sensação prazerosa de ser vencedora!

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