Mariana Gomes
Por trás do sorriso
A vida do artista para além do “Bravo!”
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Abrem-se as cortinas! Agora com tanta tecnologia! Transmissão ao vivo do balé clássico russo, a arte sofisticada também no cinema! Diretamente do palco mais consagrado do mundo, o espetáculo “Coppelia” do Bolshoi é neste domingo, 29.
Três atos, cheios de cores, cultura polonesa, dança popular, a borboleta voa pelo palco com Swanilda. O Senhor Copélius cria suas bonecas. O casamento no último ato e a famosa Valsa do Relógio. Muitas danças alegres. A técnica exige muita precisão, para solistas e corpo de baile. Figurinos, perucas e, no rosto de cada artista, o sorriso.
Mas hoje não vou contar a história do balé “Coppelia” nem citar quando foi coreografado, estreado, a ordem das danças, figurinos, etc. Essas informações qualquer um pode obter sem precisar ler a minha coluna. Venho hoje falar sobre este tal sorriso. A expressão alegre que nós, artistas, devemos levar ao palco para contagiar o público, nossa obrigação diária de mostrar a todos o amor e a dedicação que temos àquilo que fazemos.
Sorriso sincero? Para alegrar a plateia! Plateia esta que pagou para assistir a pura beleza, leveza, riqueza, técnica absoluta... Quantas e quantas vezes nos ensaios escutamos a frase: “Sorriam, não mostrem que está doendo, a plateia pagou caro e não tem culpa de que vocês estão com bolhas ou dores no corpo todo.”
É verdade, não posso contrariar. É, sim, o nosso trabalho, e posso garantir que com muita dor e muito esforço a maioria dos artistas está no palco por puro amor à arte, e jamais conseguem imaginar a vida deles sem isso.
Desde tão pequenos acostumados a calçar suas sapatilhas todos os dias, alongar antes da aula, suar, saltar, sentir dor, passar um creme na perna ao chegar em casa, colocar pés na água com sal, maquiar, prender o cabelo com grampos, vestir a malha e dançar conforme a música que a orquestra tocar. Repetimos isso todos os dias! Mal conseguimos imaginar a vida sem isso.
Acredito que a maioria dos bailarinos (e eu, particularmente) não suporta a pergunta nas entrevistas: “Quais os seus planos futuros? O que vai fazer quando parar de dançar?” As pessoas acham que discutimos isso nos camarins? Não, é um tema guardado, que ninguém sabe responder ao certo, e nem gosta de lembrar que esse dia vai chegar. Triste só de imaginar.
Mas, voltando ao sorriso...
O que será que este sorriso realmente quer dizer para a plateia? Será que a plateia consegue imaginar a verdadeira vida do bailarino logo depois do fechar das cortinas? A realidade do bailarino profissional? Ao sair pela porta dos fundos do teatro, a espera pelo metrô, depois do metrô ainda muitas estações em um ônibus, e assim, depois de algumas horas, aquele ou aquela artista chega à casa exausto, encontra sua família. Os filhos talvez já na cama, e não os vê há dias... De manhã cedinho, sair de casa para a aula de clássico e voltar à sua rotina. Muitos ensaios que não deixam o artista sair do teatro praticamente o dia inteiro, às vezes uma ou duas horas de intervalo insuficientes para chegar em casa, pois com certeza a maioria mora muito distante do centro da cidade, e neste intervalo de tempo almoçar todos os dias nos restaurantes próximos ao teatro – não é a opção para um bailarino, não aqueles com quem convivo. Poucos são aqueles que conseguem ainda frequentar uma faculdade e ter uma esperança para uma segunda profissão, para sustentar sua família, ou para prosseguir depois da aposentadoria, afinal é uma carreira de apenas 20 anos. Tardes jogadas pelo teatro, de sala em sala, os ensaios só se acumulam quando os espetáculos estão muito frequentes (5 ou 6 vezes por semana), dormir uma meia hora no sofá do camarim antes do espetáculo, jogar a perna para cima, tomar uma vitamina, rapidamente comer um fruta, fazer alguma ginástica, antes do próximo ensaio, e logo já se preparar para o espetáculo, fazer o cabelo, maquiagem, colar o cílios e – ufa! – o dia já está acabando, só falta dançar o espetáculo, que acaba sendo mais fácil do que ensaiar repetidamente na sala de aula.
Nervoso, frio na barriga? Sempre tem um pouco, mas, com a frequencia com que estamos no palco, a gente acaba se acostumando, aprendendo a conviver com isso, e entramos no palco do mesmo jeito como uma pessoa entra no seu escritório todo dia de manhã e liga seu computador.
Acabou o espetáculo. A cortina fecha, e rapidamente voltamos à pose inicial. A cortina abre logo em seguida e lá estamos nós, esperando os aplausos. Solistas entram de um em um para receber seus “Bravos”, nossas pernas já não respondem mais, a gente só quer ir para casa. É claro que para o artista é muito importante o aplauso e o reconhecimento do público, mas às vezes, parado naquela pose, já no fim do espetáculo, a única coisa que conseguimos pensar é: “Parem de aplaudir, pelo amor de Deus, deixem a gente ir para casa porque amanhã cedíssimo tem ensaio.”
Um esforço diário, um cansaço físico e moral sem tamanho de estar no palco todos os dias, escutando críticas e correções. Sorrindo pelos corredores para os mais de 600 funcionários (de ópera, balé, orquestra, administração, etc.). Trabalhamos por puro amor à arte, sim, mas e a vida pessoal? Onde ficam a família, os amigos?
Respiramos a música clássica todos os dias e nos alimentamos de exercícios. Aqui dentro, esquecemos da vida, ficamos viciados e cegos.
Muito brilho e glamour, figurinos ricos, desenhados até por Givenchi. Turnês milionárias, em maravilhosos hotéis, praias particulares em Abu Dhabi, banquetes nos melhores restaurantes, festas nas melhores boates da cidade, atendimento diferenciado em qualquer país, somente por citar a palavra mágica: Bolshoi. Escondida em toda essa beleza e pompa está uma realidade muito dura. Que poucos sabem e muitos têm medo de sequer tocar no assunto.
Foi num dia comum de ensaio-geral de “Giselle” que o diretor chegou no intervalo dos atos e levantou a questão de faltar às aulas. Diminuiria o salário pela metade daqueles que faltam mais de um certo número de aulas de clássico por mês. Até então tudo ia como de costume, eis que levanta a mão um dos bailarinos do corpo de baile, que, como muitos outros, não consegue estar presente a algumas aulas de clássico pela manhã, por frequentar faculdade e tentar uma segunda profissão, porque já está se aposentando... (Um teatro com 300 bailarinos, são diversos os casos e motivos.)
Então o bailarino explica os motivos pessoais, pelo qual ele não consegue frequentar as aulas, explica que, mesmo não conseguindo chegar à aula cada manhã, passa o dia inteiro no teatro, em todos os ensaios. Tem dois filhos em casa, esposa também bailarina, tenta ajudá-la, mas o salário é insuficiente para o estudo das crianças, e, por mais que ele dance todos os balés da programação, não consegue sustentar sua família. Ele diz em voz alta e na presença de todos: “Por favor, não diminua nosso salário, que já é mínimo, eu tenho dois filhos para criar e não estou conseguindo...” E assim prosseguiu o ensaio, sabendo que aquele foi só um exemplo, de muitos e muitos casos iguais dentro do teatro.
Foi necessária extrema concentração para calçar a sapatilha e seguir o ensaio-geral do segundo ato de “Giselle”, minhas lágrimas nos olhos afetavam minha visão de uma maneira que eu não conseguia segurar uma linha sequer do desenho do corpo de baile. Mas nenhuma correção foi feita, silêncio e tristeza naquela sala de ensaio. A professora com muita força tirava alguma palavra e dizia ao microfone um ou outro elogio. O silêncio mostrou naquele ensaio a tristeza e o reconhecimento, de todos os bailarinos, de que é o nosso destino. Suor, dedicação, trabalho, muito trabalho com plena consciência de que sempre assim será, amor pela arte, sem qualquer considerável remuneração. O ensaio continuou, o espetáculo foi lindo e todos continuam dando o máximo de si a cada dia. Só nos resta esperar o “Bravo!” da plateia no fim do dia.
Sempre assim será. O amor pela arte e, mais que isso, amor pela tradição, pelo nome mágico: Bolshoi, com seus 230 anos. Bailarinos do mundo inteiro estão prontos a trabalhar neste teatro mesmo sem nenhuma remuneração, somente para poder estar aqui dentro. Até que ponto isso é bonito? Até que ponto a arte nos faz bem? Será que estamos deixando a nossa vida um pouco de lado?
Hoje, depois deste ensaio-geral de “Giselle”, já foram marcadas reuniões diversas para discutir o tema salário, e todos os bailarinos se reuniram para ajudar financeiramente um colega que precisou fazer uma cirurgia e faltaram recursos.
Para amanhã mesmo já foi marcada uma reunião no teatro a respeito do salário e do gráfico de trabalho. Afinal, agora o tema está aberto sem medo, estamos todos com esperanças de reconhecimento profissional.
Então, caros amigos da plateia, ao sentarem no cinema neste domingo para assistir ao grandioso balé de 3 atos “Coppelia”, ou ao sentarem em qualquer plateia de teatro do mundo, levem em consideração que atrás de cada sorriso também há uma realidade muito dura. O artista do corpo de baile que está no palco todos os dias, sem exceção, tem muito amor pelo que faz e não é menor em nenhum aspecto do que a primeira-bailarina ou o solista superestrela que vocês veem no centro do palco. São todos bravos guerreiros, numa luta diária pelo seu lugar no palco, seja ele qual for.
Fomos unidos pela arte e pela esperança de que, além do grito de “Bravo!” que vamos ouvir mais uma vez esta noite, um dia cada artista terá seu devido reconhecimento.