Mariana Gomes
A propósito de Sergey Filin
Uma crônica sobre o diretor artístico do Corpo de Baile do Teatro Bolshoi, vítima de covarde ataque com ácido
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Vidro na sapatilha, colchete arrancado de vestido antes do espetáculo, agulha no arranjo de cabelo, tudo isso eu sei que acontece, mesmo parecendo exagero. Teatro é um meio cruel, onde nossa carreira é curta, bailarinos são muitos, sonhos maiores ainda, e, o pior, a ambição.
Todos amam o que fazem, mas às vezes isso nos cansa, irrita, muita força, trabalho, suor e energia gastos, e o retorno nem sempre corresponde ao esperado. Já vi bailarinos que se drogam, alcoolizam. Existem casos até de que foram parar em manicômios durante as turnês.
Tudo isso acontece, e entendo bem o porquê estando neste meio. Já vi bailarino andando na rua de tarde, na hora do almoço, e cumprimentando as pessoas na calçada como se estivesse representando no palco o papel do dia... de gladiador.
Já vi muita coisa e já perdoei muitos casos deste tipo, mas desta vez, não. Não entra na minha cabeça tamanha ambição. Esse exagero é o reflexo do que vem acontecendo com os artistas ali dentro do teatro. É o auge, o que faz todo mundo pensar no que está acontecendo.
Uma tragédia, Sergey, nos últimos dias, não enxerga. Ele somente reage à luz, claro e escuro. Foi a última notícia que tive dele.
Frequentamos igrejas, acendemos velas, os ensaios começaram com mensagens e choros. Um choque. Medo. Pavor de pensar que pessoas como essas que atacaram Sergey podem estar no nosso camarim, podem estar dançando valsa comigo em algum ato de algum balé.
Quando cheguei ao Teatro Bolshoi, sete anos atrás, Sergey Filin ainda era primeiro bailarino, e lembro quando dancei o balé “Cinderella” e ele descia a escada no 2.º ato, sentado no corrimão, escorregando, e a plateia gritava: Oooooh! Realmente, técnica, beleza, carisma de causar espanto e obviamente inveja.
Anos depois, ele foi diretor do Teatro Stanislavski, o segundo maior de Moscou, e chegou como diretor do Bolshoi no auge do Teatro, na reabertura do palco histórico, em outubro de 2011. Um cargo muito concorrido, sim, antes ocupado por Yuri Burlaka e Alexey Ratmansky. Mas nenhum desses diretores sofreu tamanha pressão de artistas, imprensa e público.
Sergey Filin chegou no momento em que o Teatro teve um boom, com transmissão do balé online e em cinemas, a abertura do palco, as grandes turnês e muito sucesso.
No meu primeiro ano de Bolshoi, ainda sem falar muitas palavras em russo, lembro que recebi um comunicado do Teatro de que eu deveria pagar uma taxa equivalente a 200 dólares para me registrar na cidade legalmente. Eu estagiava, na época, sem salário. Chorava no restaurante do Teatro, sozinha, quando Sergey, aquele primeiro bailarino, um príncipe, chegou até mim e perguntou o que havia acontecido. Pela primeira vez alguém tinha tentado falar inglês comigo. Eu contei a situação e ele me disse que a resolveria.
No dia seguinte fui chamada ao caixa do Bolshoi e recebi o valor, assinando um recibo de "ajuda de custo". Nunca esqueci isso, e depois de anos de trabalho, ao saber que este Sergey Filin seria nosso diretor, fiquei realmente contente. Mesmo sabendo que ele não se lembra dessa história, e que ninguém sabe.
Só o que posso fazer é rezar por ele e pelos artistas que amam sua profissão e realmente estão perdendo a noção dos valores da vida. Rezo por essas pessoas que vêm transformando sonhos em pesadelos. Rezo para que esse templo Bolshoi continue sendo um ambiente de paz antes que de concorrência, de arte antes que de crime.
E, com esses sentimentos no coração e lágrimas nos olhos, vamos continuar com os ensaios e espetáculos, que nunca vão parar, pois o dever do artista é encantar o público, mesmo que por trás do sorriso ele esteja mergulhado em dores, dúvidas e medos.