Diário da Rússia

Roberto Fendt

Sobre primaveras

É oportuno avaliar se as premissas da intervenção ocidental na Líbia são corretas

Em 16 de janeiro de 1969, um estudante tchecoslovaco de 21 anos, Jan Palach, imolou-se na Praça Wenceslas, em Praga. O gesto teve duas dimensões. Primeiro, o protesto desesperado contra o fim da Primavera de Praga e a ocupação do país pelas tropas soviéticas e de seus lacaios do Pacto de Varsóvia; o segundo, contra a desmoralização do povo, que havia se mostrado impotente diante da força bruta dos invasores e que com eles contemporizou.

Retornemos ao ano anterior. Eram os idos de 5 de janeiro de 1968. Naquela data, um político eslovaco, Alexander Dubcek, ascendia ao poder na antiga Checoslováquia. Com ele se iniciava um processo de liberalização política do país, até então ferreamente atrelado à antiga União Soviética e a seus satélites do Pacto de Varsóvia. Esse processo chamou-se Primavera de Praga, para marcar o degelo político e econômico do país do socialismo real.

A Primavera de Praga iniciou-se com um processo de descentralização das estruturas carcomidas do poder no país, de uma vacilante abertura para a economia de mercado e com passos tímidos em direção à democracia. Junto com ele vinha o impensável para um país socialista: um afrouxamento dos controles sobre a imprensa, uma maior liberdade de expressão, e de ir e vir.

As reformas, pelo seu exemplo, conflitaram com o aparaktik da então União Soviética. Em 21 de agosto, tropas do Pacto de Varsóvia – a OTAN do então mundo socialista – invadiram o país, destituíram e prenderam Dubcek, substituindo-o por um títere, e restabeleceram o regime anterior. Os protestos foram muitos, porém pacíficos, contra a invasão do país, muito diferentes da Revolta da Alemanha Oriental de 1953 e da Revolução Húngara de 1956.

Jan Palach foi o primeiro a imolar-se contra a apatia dos seus concidadãos diante do fim da liberdade. Um mês depois, outro estudante, Jan Zajíc, imolou-se pela mesma razão no mesmo local e em abril Evžen Plocek fez o mesmo em Jihlava. O clima psicológico e existencial dos que vivenciaram aqueles dias está magistralmente retratado no best-seller de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser”.

Em 17 de dezembro de 2010, um vendedor ambulante, Mohammed Bouazizi, imolou-se em praça pública em protesto contra o confisco das bugigangas que vendia e contra a humilhação que sofrera nas mãos das autoridades. Foi essa imolação que deflagrou a onda de agitação na Tunísia e que culminou com a queda do presidente Zine El Abidine Ben Ali. O contágio da onda de agitação tunisina a outros países do norte da África ficou conhecida como a Primavera Árabe.

Contudo, já se passaram mais de oito meses desde o início da Primavera Árabe e é oportuno avaliar se as premissas da intervenção ocidental na Líbia são corretas. Essas premissas são de que há um descontentamento generalizado o suficiente nos países do norte da África, forte o suficiente para que a maioria derrube as ditaduras existentes; e que o novo governo que vier terá os mesmos contornos das democracias ocidentais.

Foi o que fez George Friedman em sua análise da Primavera Árabe (http://www.stratfor.com/weekly/20110815-re-examining-arab-spring). Nenhum regime mudou, desde 17 de dezembro de 2010. Mudaram os governantes, não os regimes, diferentemente do rápido e completo colapso do socialismo real ocorrido na Europa Oriental depois de 1989. Para Friedman, quaisquer que sejam os desejos de mudanças de regime que poderão decorrer das guerras civis na Líbia e na Síria, não serão inteiramente vitoriosos e democráticos, e os que vierem a ser democráticos, não terão inteiramente os contornos das democracias ocidentais.

O caso da Líbia é emblemático. Como Gadafi poderia ter se mantido no poder por 42 anos se não tivesse o apoio de uma parcela expressiva (mesmo que não majoritária) da população? Por que demora tanto para a tomada final de Trípoli, não fosse a resistência dos interessados na manutenção do status quo anterior?

O fato é que, para esses interessados, não há como deixar de lutar para defender o poder, mesmo contra a maioria do povo. Para os ditadores, simplesmente não há para onde ir. E menos ainda a raia miúda que os mantiveram no poder até agora.

A primavera da Alemanha Oriental somente viria em 1989 com a queda do famigerado Muro de Berlim, 36 anos depois da Revolta de 1953. E as primaveras de Praga e de Budapeste somente ocorreriam em 1990.

Parece prematuro, portanto, imaginar que a vitória dos rebeldes na Líbia transplantará a democracia ocidental para o norte da África. Não foi o que ocorreu no Egito, onde os mesmos militares do tempo de Mubarak agora comandam o país. E também não ocorreu na Tunísia e no Iemen. Como isso poderá ocorrer na Líbia e na Síria?

[Este artigo foi originalmente publicado no "Diário do Comércio", de São Paulo, edição de 25/08/2011.]

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