Diário da Rússia

Roberto Fendt

Os carros importados e o cobertor curto

Para proteger a indústria nacional, desprotegeu-se o consumidor brasileiro

No primeiro semestre deste ano foram licenciados 1,74 milhão de autoveículos, dos quais 1,27 milhão de automóveis. A produção nacional foi de 1,71 milhão de veículos. No mesmo período foram licenciados 264 mil automóveis importados, correspondendo a 20,7% do total de carros licenciados.

Contudo, as importações de automóveis no semestre superaram as exportações em 140 mil veículos. Preocupado com a possível perda dos empregos e com a pressão da indústria automotiva, o governo decidiu aumentar a tributação incidente sobre automóveis com menos de 65% de componentes nacionais.

A principal justificativa para a medida foi o “risco de exportarmos empregos para o exterior”, diante do “assédio da indústria internacional” a nosso mercado. Trata-se de uma solução ou de um paliativo? Há fortes motivos para concluir pela inoportunidade da medida.

Comecemos pelo princípio. A tendência à redução do saldo no comércio exterior de autoveículos já podia ser antevista pelo comportamento recente das exportações de automóveis do país e das importações provenientes de terceiros países. As exportações caíram de um patamar de 650 mil no triênio 2004-06 para 506 mil no triênio 2007-09. Uma queda de 22%. Já as importações saltaram de um patamar de 53 mil no triênio 2004-06 para 208 mil no biênio 2007-08. Um aumento de 400%.

Diante dessa tendência, em maio passado o governo suspendeu a emissão automática de guias de importação de automóveis para “avaliar o impacto” do aumento das importações sobre a produção interna. O aumento do imposto é consequência dessa avaliação.

Contudo, diferentemente do que parece à primeira vista, o aumento da tributação não se aplica a todos os automóveis importados com menos de 65% de componentes nacionais. Metade das importações de carros provém de montadoras mexicanas e argentinas, países com os quais o Brasil tem acordos automotivos que torna imunes à medida os automóveis provenientes desses países.

A outra metade dos automóveis importados provém de montadoras asiáticas, localizadas principalmente na Coreia do Sul e na China. Embora ainda irrisórias no total dos carros importados, são as importações provenientes desse último país as que têm experimentado maior taxa de crescimento. Um adepto da realpolitik poderia concluir que a motivação para o aumento do imposto de importação é o potencial risco das importações chinesas para as montadoras estabelecidas em nosso mercado.

Além disso, nem todos os importados são similares aos veículos produzidos no país. Esse é o caso, por exemplo, dos cinco mil carros BMW importados no primeiro semestre do ano. O mesmo se aplica às centenas de Porsches e às poucas Ferraris que aqui aportaram. Ninguém perderá seu emprego com as importações desse tipo de carros simplesmente porque não se fabrica aqui nada parecido.

Em todos os grandes países produtores a norma é produzir, exportar e importar. Se esse fenômeno é mais acentuado nos maiores mercados, como nos Estados Unidos e na União Europeia, o mesmo ocorre entre nós. Cerca de 75% das importações de veículos no Brasil é feita pelas próprias montadoras instaladas em nosso país. Não há nada de errado com essas importações, que visam a completar a grade de veículos oferecida ao consumidor brasileiro.

O grande incentivador das importações de carros, como de todos os produtos estrangeiros que encontramos em nosso mercado, é a sobrevalorização do câmbio. Mesmo com a enorme carga tributária que incide adicionalmente aos impostos internos, com o câmbio sobrevalorizado um carro importado está cada vez mais competitivo com um carro nacional. Não é uma coincidência que na origem do problema está a valorização do real; não há forças ocultas prejudicando as exportações de veículos e incentivando as importações.

Se assim é, o mercantilismo comercial não vai à raiz do problema, se é que ter um número maior de opções para o consumidor brasileiro possa ser chamado de problema. São as importações, de veículos e de todos os demais produtos, que impedem o exercício de poder de monopólio existente em muitos setores da indústria brasileira.

O aumento da carga tributária sobre os importados protege a indústria automotiva e seus empregos, na medida em que torna mais caro o produto que vem de fora. Além de desincentivar o consumidor a comprar um carro estrangeiro, o novo imposto também permite que as montadoras pratiquem preços mais altos nas vendas do carro nacional sem o risco de desvio do consumo para o produto importado.

O aumento da tributação sobre os carros importados lembra a história do cobertor curto: para proteger a indústria nacional, desprotegeu-se o consumidor brasileiro.

[Este artigo foi originalmente publicado no "Diário do Comércio", de São Paulo.]

Tags: autoveículos, carros importados, indústria nacional, rússia