Diário da Rússia

Roberto Fendt

O câmbio salvará a indústria?

O que a política econômica não conseguiu fazer para proteger a indústria, o próprio mercado encarregou-se de corrigir

Em entrevista na última sexta-feira, em Washington, o senhor governador do Banco Central afirmou ser ainda cedo para antever o impacto da desvalorização do real frente ao dólar sobre a inflação.

À primeira vista, a afirmação parece contrariar o bom senso. Uma desvalorização do real aumenta o preço, em moeda nacional, de todos os produtos importados. O mesmo ocorre com os produtos consumidos no mercado interno e exportados. Com a desvalorização do câmbio, aumenta a exportação desses produtos e fica menos no país, aumentando os seus preços. Como poderia estar certo o senhor governador do BC?

Há duas linhas de raciocínio na afirmação do governador Tombini. A primeira refere-se ao fato de não saber-se hoje se mudou o patamar do câmbio, como defendem alguns, ou a desvalorização é meramente transitória. O efeito sobre os preços internos será maior se a mudança do patamar da taxa de câmbio for permanente, em oposição a uma elevação passageira.

Para o governador, é importante dar tempo ao tempo e verificar-se o quanto de permanente tem a mudança. Esse dar tempo ao tempo decorre de diversos fatores.

Primeiro, porque a desvalorização do real é consequência, em parte, do conjunto de medidas postas em práticas pelo BC e pelo Ministério da Fazenda, desde o último trimestre do ano passado.

Segundo, porque aumentou a incerteza a respeito do futuro do euro e dos bancos europeus. Uma eventual moratória da dívida grega afetaria os balanços de praticamente todos os bancos europeus, com reflexos sobre as linhas de crédito do Brasil e de todos os demais países.

Terceiro, porque pela primeira vez começa-se a suspeitar que a efervescência nos mercados financeiros do mundo desenvolvido poderão também afetar o crescimento dos principais países emergentes, com destaque para a China e a Índia. Uma desaceleração do crescimento desses países comprometeria o crescimento de toda a economia mundial e de nossas exportações de commodities.

Mas o argumento não se esgota aí. O governador do BC também afirmou que o repasse da variação do dólar aos preços internos no Brasil tem se reduzido muito ao longo dos últimos anos. Trata-se aqui da mensuração do que os economistas apelidaram de pass-through (repasse) das mudanças da taxa de câmbio para os preços internos.

Justamente por ser variável ao longo do tempo, o repasse de variações da taxa de câmbio para os preços internos não é de fácil estimação. Mas há razoável convergência entre os economistas a respeito da magnitude desse repasse no Brasil e de sua tendência nos anos recentes.

As estimativas variam de um aumento de 0,3% a 0,5% nos preços (medidos pelo IPCA) para uma variação de 10% no câmbio no curto prazo, e situam-se em torno de 0,8% no longo prazo (quando há uma mudança permanente no patamar do câmbio).

Em 29 de julho a taxa de câmbio estava em R$ 1,56, a menor taxa observada antes da atual convulsão no mercado cambial. Se a taxa de câmbio estabilizar-se em torno de R$ 1,70 (uma desvalorização do câmbio de 10%) e se estiverem certas as estimativas do repasse da alta do câmbio para a inflação, o efeito imediato será um aumento de 0,3% no IPCA, e o efeito de longo prazo será de 0,8%.

Convenhamos que não é propriamente uma tragédia do ponto de vista inflacionário. Mesmo se a mudança de patamar do câmbio for da ordem de 20%, isto é, a taxa passar de R$ 1,56 para R$ 1,87, o aumento no IPCA ficaria entre 0,6% e 1,8% se as estimativas do pass-through estiverem corretas.

Esses cálculos permitem tanto responder à questão do início da coluna como uma para fazer-se uma recomendação. A resposta à pergunta é afirmativa: o senhor governador do BC está correto. Está correto porque é necessário esperar para ver se ocorreu uma mudança de patamar na taxa de câmbio e, caso afirmativo, se o patamar é permanente.

Não há qualquer motivo para medidas precipitadas na área cambial porque o BC tem reservas suficientes para fazer face a turbulências maiores que as observadas nas últimas duas semanas. E também porque o BC tem instrumentos suficientes para uma pronta ação, caso essa turbulência venha a ocorrer no futuro.

A recomendação é também decorrência do cálculo efetuado. A desvalorização do real, se permanente, dispensa outras intervenções no mercado, como a recente ressurreição do protecionismo comercial, que se julgava em boa hora enterrado.

Se a indústria estava desprotegida, assim estava porque o real estava excessivamente valorizado por conta do diferencial de juros provocado pelo déficit fiscal. Agora está menos. O que a política econômica não conseguiu fazer para proteger a indústria, o próprio mercado encarregou-se de corrigir – o que o governo não conseguiu fazer nesses últimos anos.

[Este artigo foi originalmente publicado no "Diário do Comércio", de São Paulo.]

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