Roberto Fendt
A venda das joias da coroa
Estados soberanos têm dívidas e também têm patrimônios
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Em dezembro último, a taxa de juros de longo prazo da dívida soberana portuguesa atingiu 13% em euros. É a segunda maior taxa de juros para papéis com esse prazo, ultrapassada apenas pela taxa paga pela Grécia (quase 22% em euros).
É claro que com juros dessas magnitudes não há como pagar sequer o serviço da dívida, quanto menos o principal. Mesmo que a receita tributária aumentasse 3% ao ano, o que requereria que o PIB crescesse mais ou menos a essa taxa, a dívida cresceria a 10% ao ano, dobrando de valor a cada sete anos e meio.
Que fazer? Estados soberanos têm dívidas e também têm patrimônios. Se a rentabilidade do patrimônio é maior que a taxa de juros paga sobre o endividamento, vale a pena manter o patrimônio e com seu retorno ir pagando os juros sobre a dívida, até que ela possa ser reduzida a um montante administrável.
Não é essa, contudo, a situação da Grécia e de Portugal, não somente porque as taxas de juros pagas são proibitivas, mas também porque os ativos pertencentes ao Estado desses países não são rentáveis o suficiente para cobrir a conta dos juros.
Manda o bom senso que, em situações dessa natureza, se vendam os ativos e, com o dinheiro obtido com a alienação do patrimônio, se abata a dívida. É o que o governo português está fazendo.
Nem todos concordam com esse ponto de vista, embora nada tenha de ideológico e decorra da fria aplicação da matemática financeira à situação atual das contas públicas portuguesas.
Em artigo publicado na revista “Visão” de Portugal em 29 de dezembro último, Mário Soares – ex-primeiro-ministro e ex-presidente do país e homem sério e digno – afirmou que “vender o patrimônio mais importante e estratégico do nosso país é algo de muito grave, e, se corre mal, como julgo, imperdoável. Oiçam, ao menos, a vontade popular”.
Referia-se à venda das empresas Energias de Portugal (EDP), a Rede Eléctrica Nacional (REN), uma parte da Rádio e Televisão de Portugal (RTP), a GALP Energia, a Comboios de Portugal (CP, estradas de ferro), as Águas de Portugal, a Aeroportos de Portugal (ANA), a Transportes Aéreos Portugueses (TAP) e os Correios de Portugal (CTT), entre outras.
Há duas questões interessantes levantadas por Mário Soares. Em primeiro lugar, ressalta o caráter “estratégico” das empresas e a decisão do governo de privatizá-las por decisão unilateral e ideológica, sem discussão aprofundada e transparente e em momento de crise aguda para o país.
Ora, o seu partido, que até então detinha o comando do governo, foi fragorosamente derrotado nas eleições parlamentares, cedendo o lugar para a oposição, que agora inicia o processo de alienação de parte do patrimônio do Estado. A decisão, de fato, não foi do partido que governa Portugal no momento, mas do povo que o elegeu para formar um novo governo.
A decisão é ideológica somente na extensão em que reconhece que o custo de manter os ativos, em lugar de vendê-los, é a única consistente com o bom senso. Foi o governo do seu Partido Socialista de Portugal que sustentou o endividamento do país. Foi também o governo do PS que não promoveu a venda de parte do patrimônio do Estado quando as fontes de financiamento barato indicavam que secariam. A privatização ocorre agora, em mau momento, já que os preços dos ativos seriam maiores se fossem alienados há dois ou três anos.
A segunda questão diz respeito à sua queixa de que os ativos do Estado não estão sendo vendidos a portugueses, mas a estrangeiros. Ora, se Portugal dispusesse de poupança suficiente para financiar o insensato déficit público decorrente de um estado de bem-estar social (welfare state) incompatível com a riqueza do país, o patrimônio do Estado não seria alienado.
A decisão de estrangeiros de investir em Portugal, adquirindo as empresas mencionadas, assegura maior disponibilidade de recursos ao país e permite a manutenção dos empregos. Ou seria melhor a falência das empresas e o desemprego de seus trabalhadores? Ou, o que dá na mesma, a manutenção das empresas com subsídios crescentes, cujos recursos seriam necessariamente obtidos com o aumento da carga tributária da população?
A oposição de Mário Soares, homem sério e digno, às medidas tomadas para a solução da crise portuguesa deixam patentes as dificuldades do processo político de solução de problemas econômicos, boa parte deles criados por seu próprio partido. Melhor que resolvê-los é evitá-los, restringindo o papel do Estado a suas funções inalienáveis, quaisquer que elas sejam, mas que não englobam certamente o welfare state, origem dos problemas atuais.