Diário da Rússia

Roberto Fendt

Os inimigos do povo

A manutenção do status quo previdenciário inviabilizará a governabilidade do país

Tramita no Congresso Nacional a Emenda Constitucional N.º 20, de 1998, que autoriza a União, os Estados e os municípios a instituírem previdência complementar para seus servidores. Instituídas as previdências complementares nos três níveis de governo, e os competentes fundos de pensão dos servidores, esses passarão a usufruir aposentadorias e pensões até o limite dos benefícios garantidos pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Quem quiser perceber benefícios maiores que o teto deverá contribuir para um fundo de previdência que pague a diferença.

Pela sua importância, ressalta de pronto que não se trata de tema trivial. A despeito disso, entramos no décimo quarto ano de tramitação da emenda no Congresso sem que até agora tenha sido apreciada.

Qual é a situação hoje? A imensa maioria dos trabalhadores brasileiros e seus empregadores contribuem para o RGPS. É com base nessas contribuições que a previdência social paga benefícios cujos valores se situam entre um salário mínimo e o teto de R$ 3.912,20.

Mesmo para esses trabalhadores, há uma visível iniquidade, já o teto da contribuição situa-se em dez salários mínimos e o valor máximo do benefício é muito inferior ao valor máximo da contribuição.

Trinta milhões de trabalhadores contribuem para a previdência oficial (INSS). Com base nessas contribuições, em 2011 a previdência social arrecadou R$ 251,2 bilhões e pagou benefícios da ordem de R$ 287,7 bilhões. O déficit apurado (R$ 36,5 bilhões) corresponde em sua parcela maior na concessão de benefícios previdenciários aos trabalhadores rurais, não contribuintes da previdência, instituído pela Constituição “cidadã” de 1988.

Com ou sem essa aberração, o déficit da previdência reduziu-se em 22% em 2011, relativamente ao déficit apurado no ano anterior. Para isso contribuiu principalmente o aumento da arrecadação decorrente do aumento do emprego com carteira assinada no ano passado. Esse aumento da arrecadação gerou um superávit na previdência do setor urbano de R$ 20,8 bilhões. Portanto, não fora o pagamento de benefícios aos trabalhadores rurais, o RGPS seria superavitário.

A situação é completamente diferente com relação à previdência dos servidores públicos. No ano passado, os servidores contribuíram com cerca de R$ 25 bilhões para a previdência do setor público e receberam benefícios no valor de R$ 80 bilhões, gerando um déficit superior a R$ 55 bilhões. Segundo estudos do próprio governo, esse déficit deve continuar crescendo em torno de 10% ao ano. Essa diferença entre contribuições e benefícios foi coberta por todos os brasileiros, contribuindo para tornar a carga tributária do país uma das mais elevadas do mundo.

Noticia-se agora que a senhora presidente teria decidido adiar a realização de novos concursos para preencher as vagas decorrentes da aposentadoria de servidores e a nomeação de servidores já aprovados em concursos realizados até que seja instituído o Fundo de Previdência Complementar dos Servidores Públicos (Funpresp).

A ser verdadeira a informação, está coberta de razão a senhora presidente. De acordo com informações do governo, 40% dos servidores hoje na ativa estarão em condições de requerer aposentadoria até 2015. Não é possível adiar mais a constituição do Funpresp, caso contrário todos os novos servidores gozariam dos mesmos direitos adquiridos pelos atuais funcionários. Se isso viesse a ocorrer, o crescimento do déficit previdenciário dos servidores inviabilizará completamente a capacidade do governo de arcar com seus compromissos financeiros.

Não deixa de ser curioso que a iniciativa de criação do Funpresp tenha sido do ex-Presidente Lula. A despeito de seu prestígio e carisma, não conseguiu que o Congresso levasse adiante essa importante mudança institucional. Conseguirá a senhora presidente fazê-lo? Se conseguir, certamente já terá assegurado lugar entre os mais importantes governantes na história brasileira recente.

É preciso ficar claro que a manutenção do status quo previdenciário não somente inviabilizará a governabilidade do país. Mais que isso, mudar a dualidade de regimes previdenciários, unificando-os, é imperativo ético. O Brasil não pode continuar a conviver com cidadãos de “primeira” e “segunda” classes no que diz respeito ao regime previdenciário.

Na peça de Ibsen, "O Inimigo do Povo", uma pequena cidade balneária da Noruega vive exclusivamente do turismo. O médico local descobre que as águas estão poluídas e que o balneário precisa ser fechado por dois anos, para eliminar a poluição das águas. Quando o dever o chama a denunciar a situação de risco para os turistas, passa então a ser vilipendiado pelos cidadãos, que o consideram inimigo do povo.

Se persistir em seu intento, a senhora presidente poderá também ser assim qualificada pela minoria que considera que o projeto de lei fere seus interesses. Que persevere a senhora presidente em seu intento de aprovar a mudança legal. O povo saberá bem identificar quem são seus verdadeiros inimigos.

[Este artigo foi originalmente publicado no "Diário do Comércio", de São Paulo.]

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