Roberto Fendt
Valores vitorianos
Às vezes me pergunto que tipo de valores temos, se é que os temos
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Na sexta-feira, 3, o ministro de Energia da Grã-Bretanha, Chris Huhne, renunciou após ser informado de que será julgado por obstrução da Justiça, num caso ocorrido em 2003.
O caso é conhecido. Huhne é acusado de pedir que sua mulher, Vicky Pryce, assumisse uma multa por excesso de velocidade a leste de Londres, para que o ministro não perdesse a carta de motorista.
O leitor que acompanhou a história terá reconhecido semelhanças com o que se passa por aqui. Primeiro, o ministro preferiu renunciar ao cargo de ministro de Energia e Alterações Climáticas “para evitar qualquer distração nos meus deveres oficiais ou na minha defesa do julgamento, estou a renunciar”, como temos presenciado com irritação em uma infinidade de episódios semelhantes de que foram protagonistas ministros de Estado e parlamentares.
Também não faltaram palavras confortadoras. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, agradeceu a colaboração do ministro, pertencente ao partido liberal-democrata na coligação que governa a Grã-Bretanha, e afirmou estar “justamente orgulhoso” da participação do ex-ministro no seu governo.
Para nós, escaldados de coisas muito piores, pareceria uma ocorrência aparentemente banal, não fossem os desdobramentos do caso. Porque na Grã-Bretanha é falta grave pretender iludir a Justiça, passível de investigação, julgamento e, caso aceita a acusação, a aplicação da correspondente penalidade.
Porque na Grã-Bretanha se continua a acreditar que obstruir a justiça é delito grave. Comete-se um delito ou não; se aceita uma acusação além de dúvida razoável, a lei prevê que o juiz aplique a penalidade correspondente ao infrator. E não se imagine que a solução do caso irá para as calendas: o ministério público marcou a audiência para ouvir o acusado para o próximo dia 16 de fevereiro na Corte dos Magistrados de Westminster, em Londres.
Alguém poderá argumentar que na Grã-Bretanha um ministro de Estado enfrenta uma corte por tentar fugir de uma multa de tráfego, iludindo a justiça, porque ainda há no país resquícios de “valores vitorianos”.
É possível que assim seja. A expressão “valores vitorianos” foi cunhada por Margaret Thatcher durante a campanha eleitoral de 2003. Em um programa de televisão, um entrevistador perguntou se a plataforma da senhora Thatcher não aprovava os “valores vitorianos”. Com o que a senhora Thatcher entusiasticamente concordou, afirmando “que aqueles eram os valores quando nosso país se tornou grande”.
Mas não somente na Grã-Bretanha “vitoriana” esses valores prevalecem. Narra-nos Gore Vidal, em seu esplêndido romance “Lincoln”, os estertores do final do governo do General Ulysses S. Grant, presidente dos Estados Unidos entre 1869 e 1877. O grande herói do Norte na Guerra de Secessão teve seu segundo mandato manchado por inúmeros escândalos em sua administração.
Suas indicações para postos importantes no governo geraram corrupção em sete ministérios. O maior desses escândalos, conhecido como o “Círculo do Uísque” (“Whiskey Ring”), envolveu fraudes fiscais e formação de quadrilha de políticos, produtores de uísque e distribuidores da bebida. O esquema enriqueceu um grupo ligado ao Partido Republicano, do presidente, e desviou milhões de dólares (de 1875!) para uma ampla rede que os utilizava em proveito próprio e em subornos a agentes tributários.
Seu secretário particular, Orville E. Babcock, foi formalmente acusado em uma corte de justiça. A reação do presidente foi testemunhar em seu favor. Reação semelhante ocorreu quando seu ministro da Guerra, William W. Belknap, foi envolvido num escândalo de extorsão; o presidente aceitou prontamente seu pedido de demissão sem expor o demissionário ao rigor da lei.
Nenhuma dessas atitudes impediu que os acusados fossem levados à justiça e eventualmente punidos, incluído nesse rol o próprio filho do general, a despeito de não haver quaisquer “valores vitorianos” nos EUA da segunda metade de século 19.
Entre nós, é certo, não há qualquer valor vitoriano. Ministros de Estado são acusados de corrupção, pedem demissão, e fica por isso mesmo. O escândalo do mensalão data de 2005; decorridos quase sete anos, a Justiça ainda não se pronunciou sobre o caso, a despeito de o Procurador Geral da República, Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, ter apresentado denúncia oficial contra o grupo autor dos “malfeitos”, acolhida pelo Supremo Tribunal Federal.
Não, leitor, não temos valores vitorianos. Às vezes me pergunto que tipo de valores temos, se é que os temos.