Diário da Rússia

Roberto Fendt

Choramos ou não pela Argentina?

Aos poucos, o governo do país vizinho vai pondo em prática um tipo especial de capitalismo de Estado

No último sábado comemorou-se na Argentina o 234º aniversário de nascimento do General José Francisco de San Martín y Matorras (1778-1850). San Martín liderou a luta de independência da Argentina do colonizador espanhol e participou também das guerras de independência do Chile e do Peru. Com razão, povo e autoridades lembraram o natalício do herói nacional.

É questionável se teria também razão o governador de Neuquén, província argentina situada na Patagônia, ao pretender declarar a independência de sua província das empresas privadas que detêm concessões para a exploração de petróleo. Na sexta-feira, o governador declarou que, se as companhias petrolíferas não investirem, “terão que se afastar”, dando lugar a quem queira investir. A ameaça traz implícita a nacionalização das empresas.

Para ele, trata-se de “uma questão de Estado”. Na quinta-feira, o governo da República suspendeu as operações externas da YPF Repsol, empresa de controle acionário espanhol, até o pagamento de uma multa de US$ 8 milhões aplicada à empresa. Alguém poderia imaginar que se procura uma nova forma pecuniária de “independência” da Espanha, não fosse o fato de a receita federal da Argentina estar também punindo outras 300 empresas, de várias nacionalidades.

De que se trata, afinal? As províncias argentinas com maiores reservas de petróleo exigirão que as empresas que detêm concessões aumentem a produção em 15% nos próximos dois anos.

O governador de Neuquén não está sozinho. De fato, a pressão por maiores investimentos das petrolíferas privadas é orquestrada pelo governo da Senhora Presidente Cristina de Kirchner. Paira no ar a ameaça de que as concessões obtidas pelas empresas sejam cassadas, caso as empresas não concordem com esse novo tipo de “política industrial” petrolífera.

O que pretende o governo é determinar quanto deve ser investido pelas empresas e qual a meta de produção das empresas – sem que se leve em conta o retorno dos investimentos atuais e dos novos investimentos demandados.

Aos poucos, o governo do país vizinho vai pondo em prática um tipo especial de capitalismo de Estado. No modelo clássico desse curioso regime que investe recursos dos cidadãos, sem a anuência deles, e transfere simultaneamente a eles o risco da má gestão, o governo é o investidor.

No novo capitalismo de Estado argentino, o governo pretende determinar quanto as empresas devem investir, mas não coloca um tostão na exploração de petróleo. Não é sequer um capitalismo de Estado em que o governo usa a cenoura do incentivo – geralmente fiscal ou creditício – para induzir o investimento privado. Na Argentina hoje, pretende-se incentivar o investimento com a ameaça de cassação da concessão.

É claro que há razões de sobra para aumentar a produção petrolífera na Argentina. O país, antes da instalação da dinastia Kirchner no poder, era exportador de petróleo e gás.

O campo de Vaca Muerta, na província de Neuquén, é considerado pelos especialistas a terceira reserva não convencional de gás e petróleo. As reservas estão estimadas em 22,8 bilhões de barris de petróleo, e sua adequada exploração requer investimentos da ordem de US$ 30 bilhões e aplicação de tecnologia de exploração de ponta.

As companhias concessionárias terão o maior interesse em realizar novos investimentos se os mesmos forem rentáveis. O problema é que, para manter artificialmente baixos os preços dos combustíveis e do gás, o governo paga às companhias um preço muito inferior ao do mercado internacional. É isso que está impedindo que novos investimentos sejam feitos, não uma má vontade das empresas, ou uma aversão a ganhar dinheiro explorando as ricas reservas argentinas.

Se a Argentina se tornou importador líquido de petróleo e derivados, com um déficit energético estimado em US$ 6 bilhões, a causa deve ser buscada no governo, não nas empresas privadas produtoras de petróleo.

Os preços artificialmente baixos praticados no mercado pela ação do governo têm em mira controlar a inflação. Trata-se de recurso caracterizado pelo saudoso Professor Mário Henrique Simonsen como quebrar o termômetro para baixar a febre. Não é por outra razão que a conceituada revista “The Economist” decidiu e anunciou que não vai mais utilizar dados oficiais do governo argentino em suas publicações.

A questão, contudo, é mais ampla. A política de controle de preços não está falseando somente os números da inflação argentina. Ela está também eliminando incentivos à produção e gerando um singular tipo de capitalismo de Estado, fadado a continuar empobrecendo aquela que já foi a mais rica das nações latino-americanas.

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