Diário da Rússia

Roberto Fendt

Mudanças geopolíticas

Mudou o Natal, ou mudaram os Estados Unidos e a França?

Dois eventos na semana passada parecem indicar mudanças significativas no combate ao terrorismo jihadista. No primeiro, o Presidente Barack Obama anunciou que os Estados Unidos estão transferindo às forças armadas locais a responsabilidade principal para combater o Talibã no Afeganistão. Essa mudança de estratégia constitui um passo importante para a retirada das forças americanas do país.

No segundo, as forças armadas francesas iniciaram uma intervenção militar na República do Mali, situada no ocidente da África. Essa intervenção se destina a impedir que um movimento jihadista tome o poder no país e se constitua em ameaça direta às antigas colônias francesas na África – entre elas a Argélia, onde um braço da Al-Qaeda atacou um campo de gás da British Petroleum, fazendo um grande número de vítimas.

Mudou o Natal, ou mudaram os Estados Unidos e a França? George Friedman, no sempre atento boletim Stratfor, mostrou que não mudaram nem um nem outro. Os Estados Unidos não estão se tornando "isolacionistas", ou, os franceses, "falcões".

O movimento pró-isolacionismo americano tem raízes antigas. George Washington escreveu uma Carta ao Povo dos Estados Unidos pouco antes do encerramento de seu segundo mandato como presidente – documento qualificado por muitos como uma afirmação clássica de republicanismo e uma das mais memoráveis manifestações políticas na História dos Estados Unidos.

O centro da carta consistia em uma advertência aos americanos dos riscos políticos a serem enfrentados caso desejassem permanecer fiéis aos ideais que haviam norteado a criação do novo país. Ao declinar a possibilidade de concorrer a um terceiro mandato, Washington enfatizou a importância da União em manter a independência, a paz, a liberdade e a prosperidade.

Sublinhou também a importância da manutenção da independência entre os poderes, estabelecida na Constituição, e o relacionamento internacional país a país, sempre tendo como foco da política os interesses dos Estados Unidos. Para Washington, alinhamentos automáticos com as potências A ou B dificilmente serviram aos interesses americanos. Vem de uma interpretação literal da Carta de Washington a corrente que defendeu, nos séculos 19 e 20, um papel isolacionista para a nova nação – personalizada talvez na imagem projetada pelo Presidente Woodrow Wilson, que governou de 1912 a 1921.

Pode parecer estranho que a França tenha agora se interessado em comprometer suas forças armadas no Mali. Contudo, há diversos interesses em jogo, especialmente nos países francófonos vizinhos desse país.

Além disso, essa intervenção não constitui novidade na política externa francesa recente. Foram os franceses e ingleses que iniciaram a intervenção armada na Líbia, da qual redundaram a deposição e a morte de Muammar Kadhafi. E foi a impossibilidade de sucesso da empreitada franco-britânica que acabou por envolver os Estados Unidos no conflito, e assim mesmo somente em sua etapa final.

A política externa americana, pelo menos se levarmos em conta a experiência das duas guerras mundiais, não tem se alterado quando interesses de terceiros estão em jogo. Quando intervieram, os Estados Unidos pautaram sua atuação por evitar o comprometimento imediato em conflitos europeus – envolvendo-se apenas depois que as partes em contenda já haviam se desgastado mutuamente. Na Primeira Guerra Mundial, só o fizeram em 1917; na Segunda, apenas a partir de 1944. A saída do Afeganistão tem conotações distintas. Lá não se trava uma guerra convencional, como as duas guerras mundiais, em que há uma expectativa de horizonte para o término dos combates e a declaração de um vencedor.

A luta contra a Al-Qaeda não sinaliza um horizonte para seu final. Em parte porque não se combate um país, mas uma ideia, que adota países apenas pela necessidade geográfica de situar-se em algum lugar. Pode estar hoje no Afeganistão, amanhã no Paquistão ou simultaneamente no Iêmen e em um país africano.

Também não existe a figura do vencedor, a ditar condições para o vencido. O melhor que os Estados Unidos podem fazer nesse tipo de conflito é minimizar a possibilidade de dano proveniente da ação da Al-Qaeda.

Para fazê-lo, torna-se necessário lançar mão de instrumentos de exceção, geralmente aceitos pelos cidadãos como o preço a pagar para a defesa do país. Nesse cálculo, a sociedade leva sempre em conta que as medidas de exceção têm duração limitada, persistindo apenas até a vitória no conflito. Incapaz de isolar-se da ameaça da Al-Qaeda, o perigo para a liberdade nos Estados Unidos mora em admitir medidas de exceção que poderão tornar-se permanentes no combate ao terrorismo.

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