Diário da Rússia

Roberto Fendt

Lincoln: O que foi dito, e o que não foi

O presidente estava determinado a manter intacta a União, qualquer que fosse o custo

É um grande filme, com um grande enredo, um grande diretor e produtor (Steven Spielberg) e um grande ator (Daniel Day-Lewis) no papel principal. E nem sempre outros filmes reúnem esses três ingredientes.  Estou falando de “Lincoln”.

Spielberg e Day-Lewis dispensam comentários. Já o enredo trata dos esforços do Presidente Abraham Lincoln, em janeiro de 1865, para aprovar na Câmara dos Deputados a 13.ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que aboliria a escravidão em todo o país. A emenda já havia sido aprovada no Senado e enfrentava forte oposição na Câmara dos Deputados.

Não se trata, contudo, de um documentário. O filme é uma narrativa de ficção histórica, cujo arquiexemplo, na literatura, é “Guerra e Paz”, de Tolstoi, e que no cinema encontra no drama de “... E o Vento Levou” um exemplo mais recente e mais próximo. O filme retrata o esforço de Lincoln para obter a maioria de dois terços no Congresso americano para a emenda constitucional da abolição, mas deixa de dar igual ênfase ao outro lado da moeda: a luta do presidente para impedir que os Estados do Sul se desligassem da União americana.

Ao enfatizar em “Lincoln” os eventos da primeira metade de 1865, seria inevitável que o filme tratasse apenas do comprometimento e envolvimento meritórios de Abraham Lincoln com a 13.ª Emenda. Mas com isso ficou de fora o que muitos julgam ter sido a principal motivação do presidente de continuar a guerra civil até a completa derrota do Sul: sua determinação de manter intacta a União, qualquer que fosse o custo.

Esse custo não foi pequeno. Morreram em combate 400 mil americanos, do Norte e do Sul, e outros 600 mil ficaram permanentemente incapacitados – ou seja, um milhão de americanos numa população de 31 milhões de habitantes.

"A mais antiga de todas as características humanas é a sobrevivência", disse Lincoln certa vez a seu secretário de Estado, William H. Seward. Para manter a sobrevivência intacta da União, o presidente não hesitou em suspender o habeas corpus em zonas de conflito. É o que  conta o escritor  Gore Vidal em seu crítico romance “Lincoln”. Suspender o habeas corpus, no entender de Lincoln, era parte do exercício de um "poder inerente" da Presidência, a ser exercido sempre que necessário.

Não se tratava de figura de retórica. Quando parecia que Maryland poderia aderir aos Estados do Sul em secessão, Lincoln pôs o Estado sob lei marcial. Quem fosse preso sob a acusação de incitar a secessão no Estado permaneceria preso, "indefinidamente, sem acesso ao devido processo legal". Para alguns, portanto, o retrato do Lincoln histórico e real difere daquele mesmo Lincoln que é assassinado por impor a abolição da escravatura à totalidade da nação americana.

Para Harold Bloom, o Sul temia um Cromwell americano. Lincoln não teria respeitado nem os Estados, nem o Congresso, nem o Judiciário, nem mesmo a Constituição. Para Fred Kaplan, Lincoln tinha uma única visão: salvar a União e modernizar o país de tal forma que "nada pudesse desmembrá-lo novamente".

Há até quem, como Donald E. Pease,  duvide que Lincoln tenha sido o Grande Emancipador. A dar-se crédito ao autor, pouco antes de sua eleição,  o presidente teria assegurado a uma delegação sulista que pretendia apenas impedir a escravidão nos novos territórios da União – não alterando o status quo nos Estados do Sul. E Gore Vidal nos conta ainda que Lincoln teria assegurado sua intenção de reembolsar os proprietários de escravos após a emancipação, tanto  para a reconstrução do Sul como  para deslocar os libertos para a América Central.

O princípio de que a União não poderia ser nunca dissolvida dominava o pensamento não somente de Lincoln, mas de toda a elite americana de então. Para Lincoln, não havia Estados "rebelados" a serem conquistados – havia tão-somente elementos rebelados em solo americano, a serem combatidos. Terminada a guerra, os Estados do Sul seriam automaticamente readmitidos na União, a que pertenciam desde sempre.

A guerra, a mais sangrenta até a primeira guerra mundial, não produziu apenas mortes e destruição. Iniciou um processo de restrição à liberdade dos americanos – quer pela suspensão do habeas corpus, quer pela censura à imprensa, quer por ameaçar impor lei marcial ao Estado de Nova York para suprimir a oposição à primeira lei de alistamento militar compulsório da história do país.

Como o puritano Cromwell,  na Inglaterra do século 17, Lincoln se julgava um Lorde Protetor da nação americana. Seu legado foi a nação mais próspera e poderosa de nosso tempo.

A abolição da escravatura nos Estados Unidos é a  sua principal obra, pelo que será sempre justamente lembrado – e a grande mensagem desse grande filme.

Tags: estados unidos, judiciário, lincoln presidente, presodente estados unidos