Diário da Rússia

Roberto Fendt

Chipre: O que está em jogo

Por um punhado de euros, voltou-se à estaca zero na questão da crise europeia

No Livro 10 das “Metamorfoses”, do poeta romano Ovídio, o lendário cipriota Pigmalião era um escultor que se apaixonou pela estátua que fizera. Na Chipre do nosso tempo, o país apaixonou-se por uma moderna economia de mercado, baseada na prestação de serviços – turismo, imobiliária e serviços financeiros. Essas três atividades geram 75% do PIB cipriota. A paixão por um sistema bancário grande em relação ao país baseava-se na confiança de que as instituições europeias garantiriam sua integridade.

Foi no sistema bancário que começaram e se expandiram os problemas da ilha. Como Chipre é parte tanto da União Europeia como da zona do euro, a solução para sua crise financeira passaria necessariamente por uma operação de resgate do seu sistema bancário similar às congêneres aplicadas à Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha.

Dessa vez, contudo, a Troika – União Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional – decidiu, junto com o governo de Chipre, aplicar de forma diferenciada o modelo que funcionou bem para restabelecer a fé nos sistemas bancários irlandês, grego, português e espanhol.

Chipre necessita de 16 bilhões de euros para pôr em ordem os seus bancos. A Troika aceitou bancar dez dos 16 bilhões desde que Chipre se responsabilizasse pelos restantes seis bilhões.

Duas soluções foram aventadas. Numa delas, os depositantes dos bancos cipriotas seriam expropriados de parte de seus depósitos para compor os seis bilhões de euros que faltam para fechar o pacote de ajuda financeira. Os depósitos com valores entre 20 e 100 mil euros seriam tributados com uma alíquota de 6,75% do valor do depósito e os que excedessem 100 mil euros seriam tributados com uma taxa de 9,9%.

A segunda saída consiste na proposta do governo de nacionalizar os fundos de pensão do país e  colocar em prática uma venda emergencial de títulos para levantar os seis bilhões de euros faltantes.

Em paralelo, o governo tenta obter um reescalonamento da dívida do sistema bancário de Chipre com a Federação Russa, a vencer em 2016. Outras alternativas estão também sendo consideradas.

A primeira alternativa foi rejeitada pelo Parlamento cipriota. A segunda poderá ter o mesmo destino. Esticar o prazo de pagamento do empréstimo russo depende da boa vontade do credor, que não faz parte da Troika e não participou de operações anteriores de salvamento de bancos.

O mais patético de tudo é o fato de que no cerne da questão estão apenas seis bilhões de euros, uma quantia irrisória quando comparada com os montantes utilizados nas operações de resgate dos países periféricos da Europa.

O resultado do envolvimento do governo cipriota em considerar todas essas alternativas não poderia ser outro: a perda de confiança, em Chipre e no restante da Europa, nos sistemas bancários.

Nunca se cogitou anteriormente sequestrar, em solo europeu, o dinheiro dos depositantes. Esses depósitos gozavam da garantia de sua integridade e a simples cogitação da possibilidade do sequestro ameaça uma corrida bancária em Chipre e saques de depósitos em outros países da zona do euro. A confiança foi quebrada.

Adicionalmente, e com boas razões, foi quebrada a confiança dos cipriotas com relação à União Europeia e sua principal instituição financeira, o Banco Central Europeu. Por seis bilhões de euros, coloca-se em risco o principal segmento da economia de Chipre.

Ficaram mal na história também os governos. Quanto ao governo local, não poderia ser de outra forma, diante do fato de estar cogitando as alternativas apresentadas. Mas fica mal também o governo alemão, a quem se atribui a responsabilidade por fazer exigências que não haviam sido cogitadas quando os bancos de Irlanda, Portugal, Espanha e Grécia estiveram à beira do precipício e quebrariam, não fossem os pacotes de salvamento com recursos integralmente aportados pela Troika.

Por fim, a quebra de confiança na ação conjunta do governo cipriota e das instituições europeias reabre a questão da legitimidade da instituição maior, a União Europeia. Esse tema parecia ter sido superado com a decisão do Banco Central Europeu de assistir qualquer sistema bancário em crise, independentemente dos valores envolvidos.

Por um punhado de euros, voltou-se à estaca zero na questão da crise europeia. À medida que não se encontram soluções verdadeiramente duradouras, aprofundam-se a recessão econômica e as fraturas políticas na região. E tudo isso por míseros seis bilhões de euros.

[Este comentário do economista Roberto Fendt foi publicado originalmente no “Diário do Comércio”, de São Paulo.]

 

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