Sergey Baldin
Chegou a hora do retorno da Rússia à América Latina
Parte I – As mudanças no continente
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“A Rússia está retornando para a América Latina pela porta da frente, com intenções sérias e de longo prazo.” Foi com essas palavras que o presidente do Tribunal de Contas da Federação da Rússia, Sergei Stepashin, voltou para Moscou de sua viagem para a Nicarágua em 2007. A autoridade havia representado o presidente da Rússia durante a posse do novo presidente do país centro-americano, o ex-líder da revolução sandinista Daniel Ortega. Segundo Stepashin, os líderes da maior parte dos países latino-americanos estão interessados na presença permanente da Rússia na região, e não só na qualidade de parceiro de negócios, mas também na qualidade de contribuinte para a estabilidade política.
Em abril de 2010, nos 200 anos da Revolução de Maio e 125 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre a República Argentina e a Federação da Rússia, realizou-se a primeira visita oficial de um presidente da Federação da Rússia à Argentina. Ao concluir a visita, o Presidente Dmitri Medvedev declarou que a Rússia retornou para a América Latina e agora desenvolve de modo ativo as relações com os países da região. “O posicionamento da Rússia em relação à América Latina mudou. Nós achamos que aqui residem os nossos amigos, pessoas próximas com quem gostaríamos de desenvolver mais estreita parceria. E a conjuntura para fazer isso é favorável”, frisou o presidente da Rússia.
Esse comentário de Dmitri Medvedev, assim como uma série de outras declarações feitas recentemente, durante visitas bilaterais em alto e altíssimo nível cada vez mais frequentes e reuniões no âmbito do BRIC, demonstram, além da intensificação das atividades diplomáticas russas na América Latina, a grande importância que a Rússia atribui à promoção de seus interesses geopolíticos, comerciais e econômicos, bem como ao estreitamento dos laços com os maiores países da região, entre os quais, sem dúvida, estão o Brasil e alguns outros países.
Nesse sentido é interessante lembrar as palavras de Dmitri Medvedev, proferidas durante a já mencionada visita a Buenos Aires. O presidente comentou que a Casa Branca não deve temer as visitas dele aos países pelos quais a Rússia nutre interesses estratégicos. Na mesma ocasião o líder russo notou que o mundo de hoje é global, e ninguém mais detém o monopólio da verdade. “Espero que ninguém fique incomodado com isso. E, mesmo que isso incomode, não estamos nem aí”, concluiu Medvedev.
A América Latina em tons cada vez mais “vermelhos”
Quando, em 1823, o presidente norte-americano James Monroe elaborou a sua famosa doutrina, segundo a qual as tentativas das potências europeias de aumentar a presença nas Américas constituíam ameaça à segurança dos Estados Unidos, falou-se a sério sobre o domínio exclusivo da nova república sobre o continente americano, que se tornou zona dos interesses nacionais de Washington. Desde então, os norte-americanos olham para o que acontece na América Latina através do prisma da Doutrina Monroe, que continua atual mesmo hoje em dia. A ideia da Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, promovida de modo ativo pelo atual presidente norte-americano, não recebeu o apoio maciço dos países latino-americanos e foi recebida com certa contrariedade, que se resumia ao argumento de que a área de livre comércio favoreceria os países mais fortes, em detrimento dos mais fracos. Em outras palavras, manifestou-se o temor de que as companhias dos Estados Unidos passassem a dominar mais ainda a região, esmagando com seu peso as empresas latino-americanas e dificultando o acesso dos concorrentes do Velho Continente à área, numa postura que seria uma reinterpretação moderna da Doutrina Monroe.
Nos últimos anos, a situação política em alguns países da região se desenvolve de modo vertiginoso e imprevisível, e os norte-americanos não têm mais condições de controlar. As forças de esquerda na América Latina ganharam o seu ideólogo na figura do presidente da Venezuela, Hugo Chaves, que tomou para si o papel de herdeiro de Fidel Castro na luta contra o domínio dos Estados Unidos no continente. Daniel Ortega, o ex-líder da Frente Sandinista e atual presidente de Nicarágua, engrossou as fileiras de Chaves. Quem poderia imaginar que o Comandante Ortega, após três derrotas para a oposição pró-americana, afinal ganharia o poder e se lembraria dos amigos na Rússia com a proposta de retomar a parceria de vantagens mútuas?
Provavelmente o tempo das revoluções do tipo cubano ficou relegado à História. Mesmo assim, a América Latina vem adquirindo uma coloração cada vez mais “vermelha”. Na Argentina, Brasil, Bolívia, Venezuela, Nicarágua, Salvador, Uruguai, Equador e outros países da região o poder está nas mãos da esquerda ou centro-esquerda, que chegou lá pelo caminho constitucional e democrático. Em julho de 2006 essa “lista vermelha” quase ganhou um novo integrante, o México, onde o candidato à Presidência, do Partido da Revolução Democrática, Andrés Obrador, representando os interesses das camadas menos abastadas, perdeu as eleições, repletas de escândalos, por porcentagem mínima e duvidosa, para o seu oponente de direita, Felipe Calderón, o favorito dos EUA.
Até março de 2010, a representante da coalizão de esquerda, Michelle Bachelet, esteve no poder no Chile. Sebastián Piñera, representante das forças de direita, acabou vencendo as eleições e tomou seu lugar.
Para desmentir a opinião de alguns cientistas políticos de que Washington, supostamente, não nutre interesse pelos processos que ocorrem na região, o então Presidente George W. Bush, em março de 2007, realizou uma turnê por Brasil, Uruguai, Colômbia, Guatemala e México, para tentar demarcar as áreas de influência em contrapeso à aliança sob a égide de Chaves.
Essa viagem, porém, não foi algo triunfal, e, em todos os pontos do roteiro, foi marcada por fortes protestos antiamericanos. Mesmo no México, o mais próximo aliado dos EUA no Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, o NAFTA, houve manifestações de descontentamento, principalmente em função da grande muralha, erguida na fronteira entre os dois países. Esse projeto é visto pelos mexicanos como mais um dos tapas na cara que os “gringos” lhes dão tanto.
Enquanto isso, na Guatemala, os índios pretendiam realizar rituais de “limpeza” dos antigos locais sagrados após receberem a visita do presidente norte-americano.
Até pouco tempo atrás, na atribulada agenda de visitas internacionais do atual presidente dos EUA, Barack Obama, somente três viagens à América Latina haviam sido realizadas: duas para o México e uma para Trinidad e Tobago, para a participação na Cúpula das Américas.
Em 2011, finalmente, Obama empreende a sua primeira grande visita aos países da América Latina, ao viajar para Brasil, Chile e Salvador. Essa turnê de Obama coincidiu com os 50 anos do plano “Aliança para o Progresso”, elaborado em março de 1961 pela administração de John Kennedy com o objetivo de frear os processos revolucionários do tipo cubano em uma série de países da região.
No Brasil, o visitante de Washington buscou, em primeiro lugar, as possibilidades proporcionadas pelo crescente potencial industrial do país, com o objetivo de usá-lo em prol da aceleração do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, que, nas condições de luta contra a crise, sentem uma necessidade urgente de novos mercados consumidores para seus produtos e de novas fontes de matéria-prima.
As autoridades brasileiras esperavam que Obama finalmente aceitaria apoiar a candidatura do Brasil à cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU e anunciaria estar pronto para revogar as medidas discriminatórias em relação, pelo menos, ao etanol brasileiro. O chefe da Casa Branca, entretanto, preferiu não assumir compromissos firmes tanto no apoio político ao pleito brasileiro à cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU quanto em assuntos comerciais, o que, certamente, não deixou de desapontar a presidente do Brasil, Dilma Roussef, e a sua equipe.
Vale notar que durante a primeira visita oficial do presidente russo, Dmitri Medvedev, ao Brasil, em novembro de 2008, o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva agradeceu ao seu colega russo o apoio à candidatura brasileira no seu pleito à cadeira permanente num Conselho de Segurança da ONU reformado, “entendendo que será tomada uma decisão coletiva de ampliar o Conselho de Segurança, tanto em suas cadeiras permanentes, como rotativas”.
Voltando à visita de Obama ao Brasil, não podemos deixar de mencionar que ela coincidiu com o início das ações militares da coalizão de países ocidentais e dos próprios EUA na Líbia. Além disso, estando em território brasileiro, país que, em conjunto com a Rússia, China, Índia e Alemanha, se absteve de votar, durante a reunião do Conselho de Segurança da ONU, pela resolução que sancionou as ações militares da coalizão ocidental, o presidente americano falou muito mais sobre a situação na Líbia do que sobre as relações bilaterais Brasil-EUA. Ele elogiou a democracia brasileira, dizendo que o país mostrou ser possível uma ditadura virar uma democracia. Mas os brasileiros ficaram um tanto perplexos. Toda a mídia internacional transmitia o apoio dos EUA às ações militares contra a Líbia, em vez do “sim” à candidatura do Brasil à cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Além disso, não passaram despercebidos alguns episódios, quando o clima esquentou, em função da conduta pouco adequada dos membros do esquema de segurança de Obama, o que causou certa irritação no Brasil. Antes do encontro com empresários, alguns dos ministros brasileiros foram revistados, apesar do protocolo diplomático mundialmente aceito, que não permite a realização desse tipo de procedimento humilhante em relação às autoridades de outro país.
Felizmente, Barack Obama não chamou os brasileiros de bolivianos, como, em ocasião idêntica, fez o Presidente Ronald Reagan.
Para demonstrar os seus laços como o povo brasileiro, Obama conseguiu decorar e dizer com segurança em português a seguinte frase: “Olá, Cidade Maravilhosa, obrigado a todos os brasileiros!”
[Na próxima coluna: Chegou a hora do retorno da Rússia à América Latina – Parte II – Um novo concorrente na conquista do espaço econômico do continente]