Diário da Rússia

Sergey Vassilyev

O Brasil no caminho da modernização Parte II – Fernando Henrique Cardoso e a fundação dos alicerces para o crescimento

O sucesso no combate à hiperinflação garantiu a Fernando Henrique a vitória nas eleições presidenciais de 1994

A retomada da democracia no Brasil, no fim de 1980, não trouxe prosperidade. Os renovados esforços de controlar a inflação do Presidente Fernando Collor, congelando as contas correntes e dívidas das pessoas físicas, provocaram uma forte onda de insatisfação. O escândalo envolvendo acusações de corrupção contra o chefe de Estado levou ao seu impeachment em 1992.

Naquele momento, a alta inflação (de até 30% ao mês) já se mantinha no país por 10 anos. Nas condições de uma economia fortemente dolarizada e com indexação, os mais prejudicados pela inflação eram as camadas mais pobres.

A concentração de renda (relação da renda dos 10% mais ricos da população e dos 10% mais pobres) atingiu o máximo do histórico nacional. Desde 1987 o Brasil paralisara a manutenção da dívida externa e fora, por isso, privado da participação no mercado internacional de capitais. O crescimento econômico estancou, enquanto a criminalidade atingia níveis muito elevados. O sucessor de Collor, Itamar Franco (seu vice-presidente), enfrentava uma crise de legitimidade.

Em meio ao desânimo e pessimismo generalizado, o reconhecido sociólogo Fernando Henrique Cardoso, um intelectual liberal de esquerda, assumiu o Ministério da Fazenda. Ele reuniu, em 1993, um grupo de tecnocratas liberais com o objetivo de conduzir o país para fora da crise. A eficiente estabilização da moeda nacional seria a alavanca do crescimento. Assim nasceu o Plano Real. Em paralelo com a moeda nacional em vigor, o cruzeiro, foi introduzida uma Unidade Real de Valor (URV), que equivalia a um dólar americano. Todos os preços deveriam ter seu valor fixado em cruzeiros e em URV. Como, nas condições de alta inflação, o dólar tende a se fortalecer, os preços em URV eram bastante estáveis. A partir de primeiro de julho de 1994, foi introduzida a nova moeda, o real, que passou a ser a única unidade de valor para fixar os preços. Em alguns meses a inflação foi controlada.

Ao contrário dos seus antecessores, Fernando Henrique Cardoso não recorreu a medidas de choque tais como o congelamento dos preços, de salários e de contas bancárias. Em contrapartida, propôs o boicote das lojas que aumentassem os preços estabelecidos em reais. O sucesso no combate à hiperinflação garantiu a Fernando Henrique a vitória nas eleições presidenciais de 1994.

A coalizão de centro-direita, que subsidiou politicamente as reformas, ocupou a maioria das cadeiras no Parlamento. Iniciou-se o crescimento. A economia recebeu investimentos, foi restabelecido o crédito para a indústria, a renda da população aumentou. No entanto, Fernando Henrique e seus conselheiros entendiam que, para permitir um crescimento sustentável, os desequilíbrios estruturais da economia deveriam ser eliminados.

Um dos problemas mais fundamentais continuava a ser o déficit do orçamento e o crescimento da dívida pública. Realizada a estabilização financeira, o aumento do déficit orçamentário tinha as seguintes causas objetivas: como consequência de uma rígida política monetária e de crédito, as taxas reais de juros aumentavam consideravelmente, assim como o valor da manutenção da dívida; aumentavam os gastos do orçamento com os juros e também a dívida pública. Outro fator que inflou a dívida foi a adoção pelo governo federal das dívidas dos estados e dos municípios.

No início das reformas, o problema do déficit orçamentário não era devidamente considerado. As alterações fundamentais nesse âmbito somente foram realizadas pelo governo em conjunto com o FMI após a crise financeira mundial de 1997-1998, quando o real se desvalorizou. O colete salva-vidas durante a crise foi um amplo programa de privatização. Os lucros auferidos com a privatização de 1997-2000 somaram mais de 5% do PIB e ajudaram a equilibrar o orçamento. O programa de privatização fora iniciado ainda no Governo Collor. Mas para o pagamento dos ativos foram utilizados instrumentos não monetários – como os títulos da dívida pública. As maiores privatizações de Fernando Henrique Cardoso foram realizadas em moeda corrente, o que também permitiu atrair o capital estrangeiro. Além disso, a privatização contribuiu enormemente para eficiência administrativa das grandes empresas.

Até o início de 1990, as estatais eram monstros burocráticos com complexos procedimentos de tomada de decisões. A privatização, mesmo quando parcial, alterou radicalmente o universo corporativo do Brasil. Agora as maiores corporações brasileiras, como Petrobras, Embraer e Vale, são conhecidas no mundo todo pela alta eficiência e organização do fluxo produtivo. [Em setembro de 2010 a estatal Petrobras realizou a maior IPO e auferiu 70 bilhões de dólares – Nota da Redação.]

Um dos mais importantes marcos econômicos da presidência de Fernando Henrique Cardoso foi a aprovação da Lei da Responsabilidade Fiscal, que teve grandes consequências políticas e fortaleceu a Federação.

Em um sistema descentralizado, amparados pela Constituição liberal de 1988, as autoridades dos estados, principalmente em épocas eleitorais, utilizavam intensamente recursos não previstos no orçamento e assumiam obrigações financeiras que depois eram repassadas para a Federação. No meio político, era popular a frase de um dos governadores: “Fali o estado, mas elegi o meu candidato.” A Lei da Responsabilidade Fiscal restringiu a possibilidade de os estados e municípios assumirem compromissos financeiros em ano de eleições, e em muitos aspectos garantiu a estabilidade financeira após o ano 2000.

O principal elemento da reforma da Previdência foi a introdução do sistema de contas previdenciárias pessoais e a possibilidade de escolha do momento da aposentadoria, influindo desse modo no valor da pensão. Do ponto de vista social, foi muito importante resolver a questão das aposentadorias dos funcionários públicos, que sempre gozaram de excelentes condições. Por exemplo, a aposentadoria padrão era de 100% do salário com indexação, e a pensão por anos de serviço prestado era de 70% da pensão padrão. As contribuições para a Previdência, em 1998, representavam somente 17% dos gastos do sistema, e o déficit equivalente a 3,6% do PIB era pago pelo orçamento. A reforma da Previdência elevou a contribuição dos funcionários públicos e restringiu as aposentadorias antecipadas. Companhias estatais tiveram seus fundos previdenciários significativamente reduzidos. Quando Fernando Henrique assumiu o poder, os gastos federais com o fundo de previdência da Petrobras superavam em 10 vezes os lucros auferidos pela empresa.

Uma das medidas econômicas mais radicais foi a introdução do câmbio flutuante, em 1999, e a adoção doregime de metas de inflação. Durante a primeira etapa do programa de estabilização o câmbio do real se alterava pouco, o que dava condições para especulações monetárias e ataques à moeda brasileira.

Uma das consequências desagradáveis do sistema de metas de inflação é a grande volatilidade do câmbio e as altas taxas de desconto do Banco Central, o que aconteceu durante os últimos 10 anos. Mesmo assim, apesar das incessantes críticas dessa política por parte do “setor produtivo”, esse caminho demonstrou ser sustentável.

O Banco Central ganhou autonomia, e, ao mesmo tempo, foi garantida a máxima transparência de suas operações. Entre outras medidas, as publicações das decisões do Conselho de Política Monetária são mensais; bimestralmente se publicam os relatórios sobre o andamento do regime de metas de inflação; anualmente são publicadas as cartas abertas ao Ministério da Fazenda no caso do descumprimento do regime de inflação, mas isso aconteceu pela última vez em 2004. A transparência sem precedentes permite ao BC manter a alta reputação da instituição no país e no exterior. A estabilidade do real é um patrimônio nacional, e a presidência do BC é um dos cargos políticos mais populares.

Como a política monetária e de crédito é absolutamente clara e previsível para os investidores internacionais, isso se configura em considerável estímulo aos investimentos diretos. Nesse sentido, a estratégia do câmbio controlado na Rússia, apesar de tornar o câmbio menos volátil, é muito mais obscura para os investidores, já que as regras de controle monetário não estão publicamente articuladas.

Fernando Henrique Cardoso conduziu uma série de outras reformas. Recuperação e privatização dos bancos estaduais, modernização do setor bancário, quebra parcial do monopólio do setor de gás e petróleo para atração de investidores estrangeiros, privatização e modernização do setor das telecomunicações, nova lei de concessões. Medidas foram tomadas no sentido de garantir à população serviços básicos de educação e saúde.

[Na próxima coluna: O Brasil no caminho da modernização – Parte III – Lula, o pacote de medidas sociais e a interrupção das reformas]

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