Sergey Vassilyev
O Brasil no caminho da modernização. Parte III – Lula, o pacote de medidas sociais e a interrupção das reformas
Lula, apesar da retórica eleitoral contrária, deu continuidade ao projeto macroeconômico de Fernando Henrique
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Quando, em 2002, pela primeira vez um representante da esquerda se tornou presidente do país, muitos temiam uma total revisão da vigente política econômica. O líder do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, apesar da retórica eleitoral contrária, deu continuidade ao projeto macroeconômico de Fernando Henrique. O superávit primário do orçamento público foi mantido, assim como o câmbio flutuante. Apesar de criticar publicamente o Consenso de Washington e o neoliberalismo, na prática Lula seguia uma linha até mais ortodoxa do que, por exemplo, a seguida pelo governo russo. A única diferença essencial do governo anterior foi o abandono do plano de privatizações. A nacionalização também não ocorreu, mas, após a saída de Fernando Henrique, empresa nacional alguma foi privatizada.
O governo de Lula deu ênfase aos projetos sociais. O projeto mais famoso foi o Bolsa Família. A concessão de bolsas para as famílias mais pobres está condicionada ao cumprimento de certas exigências. As crianças da família devem frequentar a escola e ser vacinadas com regularidade. Esse programa social é muito popular no Brasil, recebeu alta avaliação por parte de observadores internacionais e realmente aumentou o acesso à educação fundamental e ao ensino médio.
Deve se destacar que a contribuição desse projeto para o aumento da renda familiar não é tão grande. O crescimento das aposentadorias e do salário mínimo contribuiu muito mais para isso. De um modo ou de outro, a pobreza no Brasil diminuiu o tempo todo.
Outra iniciativa de Lula, o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), é uma combinação de projetos de investimento em infraestrutura. Apesar do grande crescimento econômico dos últimos anos, a infraestrutura quase não recebeu investimentos e se desenvolveu de modo muito lento. A inauguração do programa caiu como uma luva no inicio da crise de 2008-2009, pois os investimentos em infraestrutura resultam em efeitos multiplicativos (diretos e indiretos) máximos, e geram mais empregos.
A receita federal aumentou de 21,7% para 23,8% do PIB, o que possibilitou financiar a crescente necessidade por programas sociais e de infraestrutura. Graças a isso e a alguns outros fatores (por exemplo, uma certa blindagem do setor financeiro), a crise econômica mundial praticamente não afetou o Brasil. Após crescimento no zero em 2009, em 2010 espera-se a cifra de 8%. [Nota da Redação: Este artigo foi escrito em outubro de 2010.]
Todos esses programas e medidas foram realizados no âmbito de uma rigorosa política fiscal. De 2002 a 2008 o superávit primário do orçamento era de 2,2 a 2,7% do PIB, decrescendo até o nível de 0,64% somente em 2009. A filiação a uma rigorosa política macroeconômica, em combinação com medidas de estímulo bem dosadas, deu corda no mecanismo do crescimento econômico (em 2005, 3,2%; em 2006, 6,1%; em 2007, 5,1%).
Muitos autores, brasileiros e estrangeiros, apontam que entre 2003 e 2008 o Brasil se beneficiou de uma conjuntura internacional positiva, principalmente no setor dos recursos primários e produtos agrícolas. Afirma-se também que o crescimento da economia, das reservas monetárias e da renda da população é dependente dos fatores externos. É difícil contestar esse argumento, assim como é difícil contestar que – ao conduzir a política econômica no referido período, nenhum erro grave foi cometido, aproveitando, desse modo, ao máximo as possibilidades proporcionadas pela conjuntura internacional.
Transformações
FHC e Lula são oponentes inconciliáveis. Mesmo assim, o governo desses dois presidentes tão diferentes é percebido por muitos como uma única época política. Essa época difere cardinalmente do período histórico anterior.
É difícil imaginar duas pessoas mais diferentes no que diz respeito às origens, ou à bagagem política e cultural. FHC é doutor e professor de universidade. Um sociólogo liberal e politólogo de renome internacional. Filho de uma família tradicional de militares e administradores, cuja árvore genealógica se estende até, ao menos, a metade do século XVIII. Lula, por outro lado, nasceu em uma família de trabalhadores, no atrasado Nordeste do país. Cresceu sem pai. Não concluiu sequer o ensino médio e irrompeu na política durante a efervescência do movimento sindical e das greves.
Durante muito tempo os dois estiveram do mesmo lado, contra o regime militar. Ambos estiveram na origem dos partidos políticos contemporâneos, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). A transição para a democracia sem o derramamento de sangue somente foi possível graças à eficiente aliança da inteligência liberal de esquerda com o movimento trabalhista, da qual Cardoso e Lula são representantes. Lula, ainda em 1978, apoiou FHC nas eleições para o Senado, enquanto o partido de Fernando Henrique apoiou Lula nas eleições presidenciais de 1989. No referendo de 1993, sobre o regime constitucional do país, ambos defenderam o parlamentarismo, em detrimento da república presidencialista, indo de encontro à maioria dos políticos federais.
Com o fracasso econômico do início da década de 1990 e um certo descrédito da direita, Lula tinha chances reais de vencer as eleições de 1994 à frente do seu Partido dos Trabalhadores. Cardoso, na época, era um ativista político reconhecido, mas não aspirava aos papéis principais. Para muitos, inclusive para Lula, ele parecia um “rato de biblioteca”, arrastado para a vida política pelas turbulências da democratização.
O Plano Real foi uma surpresa desagradável para Lula. Ele não entendia que, num país assolado pela hiperinflação, a realização de um bem-sucedido programa de estabilização monetária era de um potencial eleitoral muito grande. Se em maio de 1994 Lula liderava as pesquisas com 40% das intenções de voto contra 17% de FHC, após o início das reformas, após 1.º de julho, a situação se inverteu. Em outubro, FHC venceu as eleições já no primeiro turno.
Para a realização do seu programa, ele adotou o instrumental da estabilização ortodoxa, baseado nas ideias neoliberais, que sempre criticou em suas obras científicas. A esquerda interpretou isso como uma traição aos ideais e aos princípios. As relações pessoais com Lula, bem como as relações entre os partidos dos dois, azedaram. Durante todo o período das reformas institucionais, o PT sempre foi o inimigo mais determinado dos projetos de lei do governo.
Até hoje, em momentos de pico da luta política, as partes trocam fortes golpes. A esquerda afirma que as reformas de FHC não trouxeram nada, e que somente após a eleição de Lula o Brasil conseguiu sucesso. Os da direita sempre respondem que o governo Lula praticamente paralisou as reformas, sendo o crescimento econômico possível somente graças às reformas de Fernando Henrique.
É verdade, todos os principais componentes institucionais do sucesso foram fundados no governo de FHC. Até Lula reconheceu isso, indiretamente, ao assinar a “Carta ao Povo Brasileiro” durante as eleições de 2002. Naquela época, os representantes do setor produtivo e a classe média brasileira, assim como os representantes do mundo financeiro internacional, temiam que Lula, assumindo a presidência, abandonasse a responsável política macroeconômica praticada até então. Houve indícios de refluxo do capital, a moeda nacional se desvalorizou, a classe média demonstrava sinais de insatisfação. Apesar do estilo populista, a Carta mencionava dois assuntos importantíssimos. Lula assumia o compromisso de manter o baixo nível de inflação, bem como garantir o equilíbrio financeiro e o superávit primário do orçamento. Esses compromissos foram ostensivamente honrados. A continuidade do curso econômico refletiu-se na nomeação para o Banco Central de um deputado do partido de FHC, assim como na garantia de total autonomia da instituição.
A adoção do Consenso de Washington no Brasil por um governo de esquerda apenas reforça o seguinte argumento: trata-se somente de uma lista de regras ditadas pelo bom senso. Apoiando-se nesses preceitos, é possível erguer diversas políticas sociais e econômicas. Conservadoras ou voltadas para o social.
Apesar das reprimendas dos rivais políticos, Fernando Henrique Cardoso até hoje se considera de centro-esquerda. Suas políticas sempre tiveram um forte componente social, para não dizer populista. Vale recordar a campanha de boicote aos mercados que aumentavam os preços durante o combate à inflação. A lei da responsabilidade fiscal se orienta claramente no combate à corrupção; a reforma da Previdência acabou com as infundadas aposentadorias dos funcionários públicos. Mesmo a menina dos olhos de Lula, o Bolsa Família, foi desenvolvida sobre o modelo de um programa de FHC, o Bolsa Escola.
Em todas as políticas sociais e econômicas de FHC um dos componentes mais fortes era o antiburocrático. O presidente sempre se apoiou muito nas instituições da sociedade civil. As ONGs sempre foram convidadas a participar dos programas federais. A reforma do sistema administrativo das companhias estatais era do mesmo cunho. Muitos cargos tradicionalmente de nomeação política foram entregues a profissionais. As diretorias passaram a ser avaliadas por critérios formais.
Apesar de todos os adventos, Fernando Henrique Cardoso não é muito querido no Brasil. O período da alta inflação está esquecido e a estabilidade financeira ficou introjetada como algo a priori. Mas a principal crítica ao seu governo não foi esquecida – a crítica da privatização do patrimônio nacional para o capital estrangeiro.
A aversão dos brasileiros à privatização é irracional. As companhias privadas são o núcleo da economia e garantem o rápido crescimento. Do mesmo modo é irracional a confiança do brasileiro no Estado, cujas políticas irresponsáveis já conduziram o país à beira de uma catástrofe diversas vezes.
Em sua autobiografia FHC relata o desafeto do Brasil pelo capitalismo:
“Ninguém gosta desse sistema, nem os parlamentares, nem os jornalistas, nem os professores. E, dentro desse sistema, as pessoas não gostam principalmente dos bancos, dos mercados financeiros e dos especuladores... As pessoas gostam do Estado, gostam da intervenção estatal, do controle generalizado, do controle sobre as operações financeiras. Para elas, o conservador sempre é preferível a um liberal. E essa é a nossa grande dificuldade, pois nos propomos a integração do Brasil no sistema internacional. As pessoas não gostam do capital nacional e odeiam mais ainda o capital internacional. O ideal em suas mentes é um regime não capitalista isolado com um Estado forte e com grandes programas sociais... Um governo que propõe integrar o Brasil na nova divisão internacional de trabalho é visto como neoliberal. Sob este rótulo está subentendido que esse governo não quer resolver os problemas sociais. E mesmo se eu provar que o meu governo fez mais do que os outros para a resolução dos problemas sociais, não adiantará de nada, pois, ao mesmo tempo, o meu governo fez mais que os outros para a integração do Brasil no sistema internacional – e isso não é bem visto por aqui.”
Os críticos de FHC também têm outros rostos, mais “humanos”. Ao reformar o setor financeiro, o presidente afetou os interesses de grupos muito influentes da sociedade civil, tais como funcionários públicos (inclusive militares), aposentados, diretores de companhias estatais, políticos regionais. Grupos cuja especialização era parasitar o orçamento e outros recursos estatais. Eles não esqueceram os golpes sofridos durante a gestão de Cardoso.
Por isso, o presidente que realizou difíceis mas necessárias reformas, que fundou os alicerces para o crescimento futuro, não somente econômico, como também político, é muito impopular. Enquanto isso, seu sucessor colheu os frutos das reformas impopulares com ajuda da conjuntura mundial favorável. Os níveis de aprovação de Lula, ao que parece, nunca foram inferiores aos 70%.
[Na próxima coluna: O Brasil no caminho da modernização – Parte IV – A mudança do sistema político]