Diário da Rússia

Sergey Vassilyev

O Brasil no caminho da modernização. Parte IV – A mudança do sistema político

As mudanças do universo político brasileiro chamam menos atenção do que as econômicas

As mudanças do universo político brasileiro chamam menos atenção do que as econômicas. Isso acontece em parte por ocorrerem de modo mais lento e serem menos perceptíveis, e também por ser um tema relacionado ao sistema partidário.

O sistema partidário no Brasil é muito instável. Em primeiro lugar, historicamente, o país sempre foi bastante policêntrico (dividido em centros regionais). Por isso, os primeiros partidos federais (que foram marginais, aliás, como comunistas e fascistas) surgiram somente nas décadas de 20 e 30 do século passado. Antes disso os partidos atuavam somente nos estados e somente quando necessário negociavam entre si no nível federal. Outro fator responsável pela fraqueza das estruturas partidárias foi o coronelismo. Em consequência da falta de centralização do poder, a influência política em diversos territórios se concentrava nas mãos de ricos donos de terra. No período do Império eles tinham se tornado coronéis da Guarda Nacional de seus respectivos estados.

Cada um deles criou em seus territórios sistemas verticais de dependência política e econômica, garantindo a transmissão das próprias ambições para a política pública. Os políticos profissionais se tornavam meros clientes dos coronéis.

No século XX a situação mudou. Por um lado, surgiram novos oligarcas, devido à diversificação da economia, o que trouxe a concorrência econômica. Por outro lado, na medida do fortalecimento da regulamentação do estado, os políticos se emanciparam dos donos de terra para criar as próprias estruturas de influência. Essas classes de políticos e donos de terra, porém, se interpenetram. Até hoje é típica a situação de representantes da elite econômica (não de primeira linha) ingressarem na vida pública. Igualmente, muitos corifeus da vida pública se tornam donos de grandes (não gigantes) fortunas ao sair do campo da política. De qualquer modo, a influência dessas pessoas não está nas suas riquezas, mas no controle factual (devido ao sistema de contatos e compromissos pessoais) sobre diversos recursos regionais – tanto econômicos quanto políticos.

De um modo ou de outro, os políticos federais mais proeminentes estão relacionados com as elites econômicas regionais e gozam de apoio popular nos estados. Ainda mais que no Brasil, apesar do sistema proporcional das eleições parlamentares, os partidos não elaboram lista de candidatos a nível federal, mas regionalmente. As seções locais dos partidos, desse modo, se tornam máquinas eleitorais para levar os líderes regionais para o Parlamento.

Esses candidatos trocam de partido com facilidade. Devido ao sistema proporcional e à ausência de limite percentual para elegibilidade, um político popular local sempre pode comprar um partido – o mercado tem diversas organizações em estado de espera – e angariar de uma só vez algumas cadeiras no Parlamento. Com mais frequência os partidos pequenos surgem mediante acordos entre políticos populares de diversos estados. Coalizões desse tipo podem deter cerca de 5 ou 7% na câmara baixa e participar de coalizões multipartidárias, adquirindo um peso desproporcional ao seu tamanho. Em geral, essas estruturas não possuem uma ideologia clara e se pautam por programas populistas de esquerda ou de direita.

O partido dos candidatos para governador ou para o Senado é de importância secundária para a formação das alianças políticas. Até hoje é comum a prática de o partido do governo federal apoiar um governador da oposição em troca do seu apoio nas eleições parlamentares. Em outras palavras, até hoje a política brasileira é dominada pelos modernos coronéis, e as decisões políticas são resultado de acordo entre personalidades e não entre partidos.

Nesse sentido, o fundamento, com participação de Lula e Cardoso, de dois partidos ideológicos trouxe uma significativa modernização ao sistema político.

O PT surgiu em 1980, tendo sido formado pelo movimento grevista no complexo industrial do Estado de São Paulo. A chave do sucesso foi o abandono do marxismo dogmático, a aliança com a esquerda católica e maciça colaboração com a inteligência liberal. O partido atraiu para suas fileiras marxistas não ortodoxos (em sua maioria trotskistas), e em sua direção estão bem representados participantes da guerrilha urbana do fim de 1960 e início de 1970. Vale mencionar que o PT mantém boas relações com partidos comunistas mais ortodoxos.

O PSDB foi fundado em 1988 por dissidentes do PMDB, o partido de oposição “oficial” durante a ditadura. O novo partido se declara seguidor dos princípios social-democráticos, mas os seus rivais o caracterizam como de direita. Sendo um partido da classe média e da sociedade civil, tem maior influência em estados grandes e desenvolvidos como São Paulo e Minas Gerais.

Outros dois grandes partidos que definem a política brasileira contemporânea são o PMDB e o PFL (atual DEM). São os partidos mais tradicionais com elementos fortes de coronelismo.

O PMDB é o maior partido e, em essência, a aliança dos líderes políticos regionais sem uma orientação ideológica bem definida, que garante a promoção de seus representantes para as posições de influência nos órgãos do poder. Após a vitória de Fernando Henrique Cardoso nas eleições presidenciais de 1994, o partido rapidamente integrou a coalizão do governo. Com a mesma naturalidade o fez com o governo do Lula. O PFL é o único grande partido de direita. Suas raízes se perdem no partido governista Arena – Aliança Renovadora Nacional, atuante durante a ditadura militar.

O PFL desempenhou um papel fundamental durante a eleição de FHC, bem como na realização de suas reformas. Para impedir a vitória de Lula em 1994, não apresentou candidatura própria, a fim de apoiar Cardoso.

Devido ao sistema proporcional, os quatro partidos somados detêm [em outubro de 2010] um pouco mais da metade de todas as cadeiras na câmara baixa. Por isso, para a formulação de uma maioria, grupos médios e pequenos são atraídos para alianças. O que importa para esses minipartidos não é o programa do governo, mas o acesso a cargos, com a consequente alocação dos aliados nas hierarquias administrativas e em conselhos de diretores das companhias estatais. Não é de se admirar que esse sistema fomente o florescimento da corrupção.

Na cultura política brasileira a corrupção é vista como algo sistêmico e natural. Quando estava na oposição, o PT se posicionava como defensor de uma política limpa. Por isso, muitos ficaram impressionados com a grande quantidade de escândalos de corrupção durante a presidência de Lula, mesmo com toda a estabilidade econômica e a modernização política.

Pagamentos mensais para deputados de pequenos partidos aliados; compra de ambulâncias superfaturadas (os deputados recebiam 10% do valor); fabricação de um falso dossiê para atingir José Serra, candidato da direita à Presidência da República; presidente do Legislativo recebendo 110 mil reais do dono de restaurante do prédio do Congresso, para prorrogação da licença; financiamento de campanhas políticas a partir de contas em paraísos fiscais; uso de recursos auferidos em loterias ilegais; alguns milhões de dólares em espécie encontrados com os tesoureiros do partido.

Por que esta enxurrada de corrupção? Ao que tudo indica, antigamente a corrupção era maior. A opinião pública, porém, era mais tolerante. A estabilidade econômica normalizou a vida, e as exigências aumentaram. A parte mais esclarecida da população, das regiões mais desenvolvidas do Centro e do Sul do país, passou a exigir o cumprimento das regras e a concorrência justa na vida política. Mas os políticos não tiveram pressa em mudar. O PT, assumindo o poder, passou a jogar pelas velhas regras e ficou bastante desacreditado.

As reformas de FHC, ao otimizar a organização da máquina estatal, foram em si mesmas um instrumento de combate à corrupção. O PT praticamente paralisou as reformas, e o sistema de indicação política para os cargos no governo foi retomado, em detrimento da nomeação dos profissionais.

Ao mesmo tempo, a maioria dos eleitores dos estados do Norte (relativamente pouco desenvolvidos) ficou indiferente aos complexos problemas políticos do Centro e do Sul do país. Essas pessoas veem em Lula alguém que saiu do meio delas, confiam nele e sentem no dia-a-dia as mudanças para melhor.

Por isso, as eleições presidenciais de 2006 foram um divisor de águas na geografia política do Brasil. Lula triunfou nos estados do Norte, enquanto o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, venceu nos do Sul. Além disso, os governadores eleitos em todos os estados do Sul e nos dois maiores do Centro eram apoiados ou filiados ao Partido da Social Democracia Brasileira.

Tradicionalmente, o Norte, com sua agricultura voltada para as exportações, apoiava os partidos conservadores ou liberais, enquanto o Sul, mais industrializado, dava preferência aos partidos de esquerda ou dirigistas. A educação, a urbanização e o desenvolvimento da TV minaram a influência das elites conservadoras sobre o eleitorado do Norte. O crescimento da classe média no Sul do país diminuiu a influência dos partidos de esquerda na região. Em certo sentido, no Brasil coexistem dois países. Um país no Sul, desenvolvido tanto em qualidade quanto no estilo de vida; e outro no Norte, em desenvolvimento, com as preferências políticas correspondentes. Claro que não estamos falando de uma real divisão política. O Norte está rapidamente se desenvolvendo, e deverá alcançar o Sul em breve. Em dez anos o quadro da distribuição política deverá ser completamente diferente.

O sistema eleitoral, por outro lado, dificilmente vai mudar. Todas as tentativas de introdução do sistema majoritário e proporcional misto são bloqueadas por partidos médios e pequenos. Isso significa falta de sustentabilidade das figuras no poder (devido à alta rotatividade dos partidos entre as coalizões) e grandes dificuldades em aprovar legislações sistêmicas, que interfiram nos interesses dos grupos sociais influentes.

[Na próxima coluna: O Brasil no caminho da modernização – Parte V (final) – Do futuro para o presente]

Tags: brasil, economia, fhc, lula, modernização, política